Teria ainda doze anos para alcançar os rasos 35 anos da perspectiva de morte como travesti. A primeira vez que ouvi este dado, meus olhos arregalaram e mal sabia que com o tempo se tornaria tão claro os motivos dessa faixa tão reduzida de sobre-vida. Que na verdade 35 já era um desafio e cada dia seria necessário pensar como passar os 144 meses ou 4380 dias que estavam por vir e provocando cada vez mais dúvidas se chegaria até lá. A perspectiva de vida, de vida! ,estava em outro horizonte, na luta cotidiana pela destruição da sociedade capitalista assassina das minhas irmãs e irmãos trans, aonde poderíamos simplesmente ser com plenas condições.
O suicídio do prazer, do corpo e dos anseios, lento e paliativo dos hormônios, que ainda posso sentir correndo em minhas veias, aumentado pelos cigarros e as doses quentes, consciente, é todavia o que me aproxima da vida que me é tirada. Os pensamentos sobre suicídio que arranca os batimentos e a sensibilidade instantaneamente rondam sempre como um fantasma que não oferece conforto. E os dias se repetem com o anoitecer me prendendo num beco sem saída, horas passam, dias passam, bons e maus momentos se apresentam, e a dor física e psicológica nunca. Começo então a entender que vou ter de conviver com isso, com estes pensamentos e com a incerteza se 35 não será muito pra mim.
O corpo desconhecido, impedido de ser estudado e cuidado, vai se definhando na busca por sua liberação. Quanto mais insisto em ser, menos sou e mais doente me torno. Me diagnosticam como doente mental, mas somente minha mente se mantém sadia, lutando constantemente sem vacilar. Me mantenho consciente para enfrentar tudo e todos, dos olhares, as pauladas, do beijo enjoado as gargalhadas, da patologia a disforia, o medo de seguir vivendo assim do medo de morrer por decidir viver. Me sinto sozinha, adoecendo com um sorriso para não provocar pena ou atenção, me fortalecendo para dias piores, que virão.
Enquanto isso meu corpo que adoece com as doses hormônais que decido, desesperadamente, tomar com anseios imediatos, é ignorado por completo. Ninguém se importa com o corpo, a saúde, o bem estar e a vida das travestis. Nós submetemos aos anticoncepcionais destinado as mulheres cis, ja altamente perigosos e não recomendados, sem qualquer estudo ou segurança das reações e efeitos colaterais. É a medicina dos sintomas, capitalista voltada única e exclusivamente ao lucro da grande indústria farmacêutica descomprometida por completo com a saúde e a segurança de todos, que dirá das travestis, homens e mulheres trans. Da minha cabeça querem a todo custo diagnosticar e controlar, meu corpo quando burla o controle estatal, se indisciplina a cisnormatividade, quando se recusa a manter-se num rumo imposto mascarado de "natural", paga seu preço quieto. Sem coragem de buscar ajuda dos postos de saúde e das UPAS transfobicos, onde o nome social é acompanhado do nome de registro para garantir um direito pela metade, dos olhares e comentários assim como as perguntas sempre tão direcionadas a "população de risco", que nada se faz para prevenir ou superar tamanha desigualdade e vulnerabilidade que vivemos. Ah! Eu que trabalho na saúde que sei, pra além dos folhetos e discursos, é exaustivo filas e filas para não saberem lidar com seu corpo. Supõem a tudo que estamos com DST, pois somos junto aos homossexuais a "marca do câncer gay" - HIV, AIDs - ou são os hormônios, mas vale mais acusar isso, do que ter qualquer estudo ou atendimento próprio que apresente uma saída a trágica realidade imposta a nossa construção de identidade de gênero.
Resta a mim, sozinha, a tarefa de entender meu próprio corpo. Escrevo meus sintomas, leio sobre possíveis doenças, mas nada comprovado. Elaborou teorias, divido com algumas amigas, me formo em medicina pela internet. Ainda assim, a dor já era tamanha que não podia mais evitar ir ao médico, como não fiz quando os primeiros sinais da hormônização apontavam em desconforto com minha genitália. Com muita desconfiança e cautela consultava me sempre tentando apontar meus "grandiosos estudos" virtuais.
Não foi uma, mas duas, três e quatro vezes que tive de me despir frente aos médicos, uma situação constrangedora, depois de explicar repetidas vezes que sou trans e por isso suspeitava de inflamação na próstata (órgão que as mulheres cis não possuem). Os médicos realizam seus exames de rotina invadindo meu corpo, e mesmo que não lhes fosse a intenção, eram evasivos simplesmente pelas profundas dificuldades de ali estar, nua e desconcertada. Os médicos examinavam, mas não levam em conta nada das nossas vivências, baseiam-se num corpo cis que não me cabe. Todos me perguntaram quantos parceiros eu tive, e se usava preservativos. Perguntas de rotina, talvez, mas os olhos não me enganam. Fui da Santa Casa a UPA, da UPA a UBS, mas nos distintos exames nada apontava e repetiam que "eu estava bem". Fui então numa manhã fria até o Centro de Referência as Travestis (CRT) e me dei de cara que estavam em greve. Sem saída, marquei retorno com minha psicologa, a única coisa que ainda me restava fazer: desabafar. Retornar era um sinal de desespero e amadurecimento porque havia abandonado o acompanhamento (obrigatório) logo após o laudo sair com medo que meus pensamentos levassem a qualquer impedimento de seguir o tratamento hormonal. No dia da consulta, ela foi em um velório. Meu coração se desfez, e sozinha, outra vez, me vi presa a um corpo que cada vez mais se desfazia na aparência e completamente dolorido por dentro. Uma palavra? Invalidez.
...
Ele, então.
Dormiu e não acordou com o despertador. Eu levantei, evitando repetir o erro de me desorganizar na espera de que algumas horas amais pudessem reverter minha sede. Ele não é água, por vezes, não é também leite, nem algo que possa molhar a garganta. É ele próprio, a única coisa boa no mar de tanta insatisfação. Mas tampouco, ele também me satisfaz, ainda que amenize. Por mais romântica que eu seja ou otimista com seus lábios tão próximos, não cabe nele um peso tão grande dos castigos secretos destinados a mim. "Meu desespero ninguém vê, sou diplomado em matéria de sofrer", traduziu o alarme.
Caminho rumo ao trabalho, compulsório e insatisfatório, trago e solto a fumaça no ritmo do rap que me acompanha, sem me tornar menos só. Não choro, não me permito mais. Mas por dentro, é como se corresse um rio, onde só a senhora Woolf pôde se afogar e eu assisto, sem seu alívio. Mais um dia inútil, por certo, de um trabalho que exige bem-estar para manter todas as coisas como são. O problema é quanto mais se mantém, mais desesperador fica. A miséria que vejo nos meus pacientes é reflexo direto da sociedade que me empurra também a miséria. Me reconheço nas fugas, que não me permito, mas invejo. Muito longe de covardia, estes vivem a dor que sentem sem menos de transparecer. Sem refúgios, sem escolhas também.
A noite só penso em dormir, programo me desligar assim que acordo. Me pergunto se estou entrando em depressão ou se são apenas dias ruins que estão se estendendo pelas semanas, completam um mês.
Ainda sim, não resisto e sorrio quando ele está por perto, porque de repente, tão fora do costume e do meu contexto, quase saio de mim e desse reflexo do espelho, me sentindo eu mesma, carregando um corpo quase morto, mas com um sorriso bobo, apaixonado, de imaginar que um dia isso poderia ser diferente. E que ele, dessa vez, existe.
Se mistura tudo nesses dias, perde-se a coerência. Estou permanentemente doente, e já não me parece que vou melhorar. Penso então que daqui pra frente será isso, assim, permanentemente incompleta como consequência do que me fiz. Do que por conta própria, onde os castigos sociais são secretos e mascarados pelas instituições democráticas, causei aparentemente sozinha em mim. Minha sexualidade talvez tenha sido castrada por definitivo, e é um luto profundo da alma. Primeiro foi o orgasmo, depois minha relação com o pênis que cada vez menos me trazia conforto, ora pela imposição social, ora pela dificuldades de ereção. E agora o mais assustador, eram as dores e a ausência de desejo anal. É uma questão de tempo então, pra que este romance se torne o que pode ser, apenas amizade. E eu, sozinha por completo, encarar de frente minhas penas. Retardo ao máximo, mas não poderei evitar. Me atraso ao trabalho, perco a hora, penso e me dedico por vezes em excesso ou exagero, com a sensação do que se vaza as mãos. Meu corpo de só 23 anos já cansado e sem hormônios começa a se desfazer. Grita atoa porque a voz roca já não sai. Ou pior meu corpo volta a fazer-se no sentido contrário. Não sei se os hormônios que voltarão a produzir, negando-me, irão amenizar ou aprofundar as dores e minha disforia. Cada dia que passa fica mais difícil me sentir bem comigo mesma. Combato a beleza cisnormativa e a perseguição ideológica de me disfarçar de cis, mas isso não muda que meu corpo não me representa.
Ele não liga, diz ao menos. E isso importa muito, mas não ameniza. Por vezes desconfio, se me deseja mesmo ou aprendeu a gostar. De alguma forma seu respeito, me afasta, porque parece menor a necessidade do meu corpo se adequar. Mas não é por ele, ou só por ele, agora. De alguma forma sua indiferença disto tranquiliza, porque não é indiferente com o que sinto. Mas por incompreensão, ao mesmo tempo que me deixa mais segura não me vê como objeto, mas por inteira, também me torna mais responsável pelas decisões que só eu posso tomar. Pela primeira vez, sou mais que sexo, que um buraco, escondido e envergonhado. É, de todos os muitos homens que já estive com - nunca junto! - o primeiro que talvez me veja com estes olhos, humaniza.
Parece estranho, assim quem olha de fora, que este contraponto da vida não satisfaça. Mas me amedronta, atropela e por vezes intimida a intimidade que lhe pertence. As mãos dadas, o beijo de cumprimento, o beijo na testa ou no pescoço espontâneo, a mão que aperta minha coxa e os olhos que me atravessam, transpassa rápido demais. Sua língua dança na minha boca, assim como suas mãos e dentes me fazem dançar nua na cama. Ele escolhe o ritmo e eu sempre me deixo levar, mesmo sem saber dançar. Ele ri baixinho enquanto me pergunta se estou bem no meu ouvido, enquanto minha respiração não volta ao normal e meu coração já não separa o corpo da mente, conecta de forma que neste momento eu já sou toda dele, ainda que nem eu, e nem ele, pertença a ninguém. Meu corpo encaixa de forma que não se mede sozinho por sua aparência, mas pelo ritmo que se entrosa e já parece ser uma mistura própria.
Por vezes ele me adverte. "Ficar contigo não é só beijo, quero ouvir você, conversar, passar tempo junto". Como se pudesse segurar meu desespero e a adaptação a miséria das relações, acostumada a ser sempre objeto. Então que tira a migalha da minha mão e joga aos pombos que lhes pertence e me quer por inteira, mesmo quando tenho me sentindo menos de um terço ou apenas um quinto de ser, devido a todo o resto do mundo, que ele é exceção. Me coloca em risco ao me dar outra meta mínima de relação, humaniza de forma a afastar-se de tudo que já vivi com homens. Sei que ele vai embora, mais cedo ou mais tarde volta, até quando eu não sei. Mas como nada é feito pra ser eterno, aproveito e agradeço a noite que passou. Sei que sem ele, volto de novo pro lugar de onde vim e quiseram por todo tempo me convencer que me convém.
Nas ruas, de dia, ele legalizou o toque, o beijo e o carinho. Um detalhe pequeno, discreto e quase invisível as pessoas cis, mas raro as pessoas como eu que raramente são vistas como pessoas. Ele foi o primeiro em 23 anos, que ao me ver, sorri e me beija, sem olhar pros cantos, medir as consequências e evitar ser reconhecido. Me deixa confortável, mas... é sempre uma insegurança de pra aonde isso me leva. Não quero me tornar dependente, por mim e por ele. Que ele não se torne paterno e nem eu sua, permitindo que cresçamos juntos sem nos dissolver. Mas cada dia mais, quero ele mais...e mais. Um anseio ilimitado de quero ao meu lado. Também porque já não encontro conforto em mais lugar algum.
Felicidade é sempre contraditória, porque a realidade joga a favor por algumas horas, mas também revela toda uma trajetória de solidão. E sei que preciso me manter consciente que mesmo com ele, sou sozinha. Trans, mulher, guerreira, por conta própria, mas também cheia de companhia na luta pela vitória dos nossos. A guerra não para e meu corpo segue como campo de batalha, por isso, os sorrisos me amolecem mas não me deixam esquecer, não permito.
...
Volto a escrever, mesmo desta vez sem ter poesia, ritmo ou palavras bonitas escolhidas para fazer-me melhor. Só escrevo porque assim não me escondo tampouco me rendo ao que vai acontecer. Simplesmente, na escrita se diz mais do que se pode e sem medo porque ninguém pode ouvir. É um grito abafado no travesseiro ou um sussurro pra alguém que já dormiu, alivia um pouco. Não mais do que pode aliviar um trago na madrugada sem álcool pra nos fazer dormir.
Mas sigo, todo dia sozinha encarando que escolhas que só eu posso tomar, tomarei. Já pago o preço imposto por querer ser eu mesma, são os castigos secretos que nos levam embora pouco a pouco. E a dívida é por conta. E nos deixam sem palavras para revidar. Me sinto há algum tempo sem saida. Ele alivia, me diz sem som algum que valeria a pena chegar aos 35 e passar. Me disse, no breu, deitado ao meu lado, que sou jovem e tenho muito ainda pra viver. "Mas o mundo é uma bosta", ele sabe, eu sei, talvez não seja tão bom assim viver. Mas ele é exceção, e sabe disso, num mundo podre que o romantismo não salva, machuca e por vezes fragiliza. E que ter uma visão alegre não pode colorir o que foi manchado de preto e branco.
Trago outro cigarro com a consciência de que me mato ainda mais. Noutra noite, ele dormia e eu acendia um segundo cigarro, não era apenas insônia, mas uma voz que me perseguia. Ele atrás de mim me abraçava e me esquentava num frio cortante. Uma das suas mãos seguravam a minha, e eu me esforçava para minha respiração e a leve tremedeira do choro não o acordassem. Pensei "Estou com medo de morrer", depois sentindo seu toque, que por vezes se mexia naturalmente, me ardia a alma. Eu que não acredito em religiões ou espiritualidade parecia crer que ele aparecia quando eu ja não tinha mais tempo. Não queria magoa-lo e pela primeira vez me sentia responsável por alguém assim, porque pela primeira vez tinha certeza que ele tinha sentimentos por mim. Não poderia acorda-lo para mais uma notícia ruim. Minha cabeça girava, eram os dois cigarros seguidos, mas o sono estava ainda longe. Não saia da minha cabeça que seguir vivendo assim, era melhor afasta-lo o quanto antes. Que egoísmo te-lo amenizando todo o mundo enquanto me trazia uma brisa de felicidade. Não queria ficar só, tampouco deixa-lo consciente. Que dor! Que rasgo no peito, me tirava o ar. Virei-me e deitei em seu peito. Que alívio me trazia abraça -lo e poder ouvir seu coração junto a sua respiração serena, adormeci.
Pela manhã, ele me disse que teve como um pesadelo, um senrimento ruim, agonia, desespero. Não respondi. Beijou-me e brincou de me deixar sem ar enquanro beijava meu pescoço e roçava sua barba em mim. Ele me tira de mim. E me traz ao mesmo tempo num êxtase de ser livre, mesmo que doente. Olhei pro teu lábio, porque tudo que diz ou beija é amor que sinto. Não disse "Eu te amo", seria vazio, não se trata de um amor romântico, mas do companheiro que admiro e me faz anoitecer.
como sempre, gótica! mas doce. adoro ler você.
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