as horas só foram intensificando, e cada obstáculo comprovava minha paralisia. a contragosto levantei e me concentrei até não pensar mais em mim mesma, e só assim, podia respirar sem os cigarros que sempre me acompanharam, quando ninguém mais continuo. porque agora faz tanta importância ter uma mãe, se ao longo da vida, isto se comprovou mera formalidade? porque o menino do sorriso besta, do corpo que me eletriza e da respiração que me acalma o coração tá tão próximo pra me ferir e tão longe de qualquer abraço? porque meu corpo tão demorado para chegar aqui é sempre tão insuficiente e mesmo sem o cheiro de podre que outrora os hormonios produziam, agora é apenas... insuficiente. os hormonios não vão me trazer o que procuro né? nem todas as cirurgias do mundo e da ciência capitalista poderiam devolver os anos que me foram roubados como Virgínia, os dias que ainda serei desreconhecida, por eles, enquanto passo por eles na rua, enquanto sento no pau deles na minha cama escondidos das esposas, dos amigos, dos vizinhos, até dos meus vizinhos, até dos estranhos. estar comigo é carregar o peso. eu estava de pé até agora com aquela dor da perlutan que me faz mulher, me faz mesmo com dor seguir em frente, mesmo contra o machismo, sair a noite e desafiar o meu lugar no mundo. mas meu peito tá amargurado demais. tá sangrando, sem qualquer conforto de uma hora parar, por completo. parece que as horas e os dias, vão me cobrar muito mais. e a imagem da rua que eu descia, um dia sim e um não, para chegar ao trabalho, das manhãs, das chuvas de verão, do frio do inverno, das lágrimas sob as duas rodas, e eu pedindo pra que algo acontecesse porque eu não seria capaz de me matar ali. como não vou me matar agora, nem nunca. não deixaria um gosto de mais uma vítima deste sistema, não...mesmo. mas ele tem me vencido, me tirado o orgulho, a cara fechada agora tá destruida. há dias não uso maquiagem porque parece que só vai piorar, evitar os espelhos é evitar a verdade e deixar-se moldar pela cisnormatividade que quer me sugar pro ralo de onde ela saiu. libertem os corpos, as vidas! libertem os vivos do peso dos mortos, desta ideologia.
não posso mais aceitar que só aquele menino do beijo onde sempre me perco, imploro e me rendo por outro seja a forma de fugir da dor que me atravessa. não pode ser tão ilusória a nossa paixão, tão verdadeira mas tão surreal se olhar a realidade como ela é. meu corpo não vai mudar, os homens não vão mudar, nada disso vai mudar agora. e eu só queria desaparecer
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