terça-feira, 8 de maio de 2012

Carta à mãe

 de Maio de 2012


Tânia,
           
Há anos venho te chamando de mãe e desde sempre viemos vivendo sem refletir mais profundamente o que é isso que chamamos de vida. Nos últimos dois anos, vivenciamos mudanças drásticas em nossas vidas, uma delas foi a perda de seu companheiro e meu pai. Sem dúvida, isso desestabilizou toda nossa família, mas também fez com que nos reestruturássemos de forma mais libertária. Sei que tenho cada vez mais me afastado de casa, e isso parece cada vez mais um problema, quando não deveria ser. O motivo de eu te escrever é uma tentativa de te mostrar como a realidade do mundo anda distorcida e pouco temos contato com ela. Primeiramente, queria explicar sobre a origem da família, que foi a aula que tive nesta sexta-feira (27/04). Os primeiros seres humanos foram completamente libertos, não havia moral, não havia instituições, nem mesmo religiões monoteístas. O que havia eram pessoas que se relacionavam entre si. As relações sexuais pouco tinham a ver com a reprodução, pois não era obvio (como de fato só se tornou graças ao avanço da ciência) esta ligação. Por muitos anos ninguém sabia como uma mulher engravidava. Essas pessoas se organizavam de uma forma distinta da nossa, as crianças chamavam de mãe todas as mulheres da aldeia e de pai todos os homens da aldeia. Isto porque todas as mulheres tinham relações sexuais com todos os homens, e a relação sexual que determinava a terminologia de parentesco.  Não havia também a compreensão de que um filho, depois que crescido, ainda era filho da mesma mãe. Isto porque, na natureza, existe um determinado tempo em que a mãe fica próxima dos filhotes e depois os abandona. Somente após essa consciência que se houve a proibição de incesto. Primeiramente, entre mães e filhos. A família então se origina da regulamentação das relações sexuais, com a proibição do incesto. É, eu sei, parece algo tão distante a ponto de se tornar surreal. Mas é importante, entendermos como a construção dos seres humanos é uma construção histórica, não divina. Isto é, apesar das religiões e das crenças individuais, existe-se uma história e uma evolução da humanidade. E onde estamos agora e como nos relacionamos com o mundo se explica por essa história e não pelas religiões que começam a explicar o mundo de hoje por hoje. E negam todo o mundo material, concreto, palpável por um mundo idealizado e que submete a vida a espera da vida após a morte.
           
A primeira forma de opressão de um homem sobre outro, foi da mulher pelo homem. Assim que o homem descobriu a  agricultura e a domesticação de animais, ele passou a precisar de terras só pra si e assim a precisar saber pra quem suas terras ficariam após sua morte. Daí, a proibição da mulher a ter relações sexuais com outros homens. Daí, o surgimento do machismo. Trazemos isso pra hoje. A relação que você estabeleceu com o Sergio foi uma relação estritamente formal. Você pouco o amou com paixão, e pouco pode viver sua vida independente e em busca do seu prazer (tanto sexual, quanto nas práticas como yoga, etc).
Esses estudos me ajudaram a entender como se construiu essa forma de organização chamada família. Que hoje, tem a forma burguesa de família. Ou seja, um casamento (na igreja e no cartório) heterossexual que tenha filhos. Mas pensando como Tânia, o que de fato te faria feliz? Quando foi que respeitaram o seu direito enquanto mulher para ter uma vida independente? O que fizeram da sua vida e o que te fizeram fazer dela? Hoje, você ainda mantem sua tripla jornada de trabalho. Trabalha na UBS, arruma a casa e ainda cuida dos dois filhos (que já não mais PRECISAM de suas atividades domésticas). Até quando a mulher quando se torna mãe terá que abrir mão de sua vida inteiramente pelos filhos e abrir mão de seu próprio corpo, de seus próprios desejos? Eu já te disse que chegou a hora de você se posicionar em frente a sua vida. Não é possível que viva sua vida inteira em função dos outros, sem aproveitar a suas próprias capacidades e sensibilidades.
Uma vez estabelecido essa relação entre você e a sua posição social na família dentro do sistema capitalista, é preciso entender qual o papel da mulher nessa sociedade. As mulheres não tem qualquer visibilidade  a  não ser as brancas, magras e ricas. Este padrão completamente burguês nos pressiona a não aceitarmos nosso corpo, a alisarmos nossos cabelos e a buscar emagrecer de formas anti naturais. Vivemos nós de formas anti naturais, dormimos menos do que gostamos, passamos a vida toda trabalhando em atividades que não escolhemos, não temos educação gratuita e de qualidade para todos, não temos saúde como um direito garantido, não temos direito de explorar nossa consciência e nosso corpo com avanços da tecnologia, seja com substancias legais/ilegais seja com o conhecimento cientifico que é restrito aos ricos.

Chegou a hora de mudarmos nosso estilo de vida!
Sinceramente, eu me sinto muito fragilizado em retornar para a casa dia sim, dia não, e perceber que ainda se vive dessa forma. É dentro do partido político que encontro uma contra pressão a me adaptar a esse mundo doente que faz com que os seres humanos vivam de forma tão anti natural que tenham medo da morte. Que não entendam o mundo tal como ele. Que sejam levados por mitos e pré-conceitos, que uma mulher ria de outra na televisão sem perceber que está se oprimindo ao fazer isso. Porque somos nós, as mulheres, os homossexuais e os negros que sofrem essas opressões diariamente.
Existem pessoas conscientes que fazem com que vivemos alienados. Achando que a vida das novelas de fato existe e que a sociedade não é divida em classes. A única forma de nos emanciparmos, de mudarmos o mundo, é adquirindo consciência de que este mundo em que vivemos é doente e é possível muda-lo. Assim como a história da humanidade foi transformada sempre, há hoje uma abertura revolucionária de mudarmos o rumo da história de uma vez por todas. Para que os seres humanos saiam da pré-história e possam finalmente viver livres dessas opressões. Vivam fora de um sistema que veja a vida como mercadoria. Que as futuras gerações possam viver intensamente e não perder tempo em serviços que de nada acrescentam os seres humanos e são exercidos pela classe trabalhadora pela deseducação dada a nós pela burguesia, como são os garis, como são as empregadas domesticas, que são trabalhadores dignos que ocupam cargos que poderiam ser superados se cada um fosse autossuficiente e conseguisse no mínimo se manter.
Sei que na concepção de mundo que tínhamos, eu abandonei a família e fui viver por ai, mundo a fora. Mas o esforço que hoje faço é para mostrar como essa concepção é criada para controlar nossas vidas e nos submetermos ao limite de consciência e de prazer. Eu desejo para você, Tânia, uma vida plena. Não como mãe, esposa ou qualquer outro papel que apenas sirva. Mas como mulher, como ser humano, como individuo, que seja capaz de agir e refletir a vida a partir de si mesma. Eu desejo que sua existência seja plena e seja vivida intensamente. Desejo que você rompa os padrões da sociedade para poder sentir novas experiências e não se sujeitar as opressões e as depressões causadas pela sede de lucro dos grandes empresários que produzem as propagandas, os novos produtos que consumimos sem necessidade, das novelas e dos padrões de beleza (tanto que queremos ser, como que desejamos).
No fim, escrevo pra dizer que te amo. Mas diferentemente da forma com que os filhos amam as mães. Porque não te amo por termos sido ligados socialmente, te amo pelo esforço infinito que você fez em ser o que se tornou. E vejo que os limites e as opressões que você exerce são criadas pela superestrutura, não por vontade sua. Sair de casa é dar um passo a frente da nossa libertação de conjunto. Tanto em você se responsabilizar menos por mim e ter mais tempo pra si, para até mesmo redescobrir o que é ser Tânia e o que é que você gosta. Quanto para que só reste nosso amor e não mais essa relação estabelecida pela sociedade  capitalista. Até porque, a maioria dos filhos amam suas mães,  mas não as mulheres que estão através desse papel social. Não quero que você se sujeite a cuidar da casa e preparar minha comida, quero que você se coloque no papel de viver sua vida e se realizar enquanto ainda está viva.
Sei que também fui pouco paciente contigo em toda essa transição. Sempre fui de jogar as bombas, as verdades e fui pouco sensível para entender o quão difícil também era pra ti. Também foi difícil pra mim, até hoje é. Porque a busca por entender o que sou e o que almejo ser é uma busca cheia de contradições. Há um certo tempo, queria ser mais aberto com você e somente agora consegui acertar minha cabeça para poder escrever esta carta e me propor a encarar a situação. Sempre gostei de homens, e hoje é mais claro ainda como isso não é uma escolha, mas sim uma construção social que me limita a não me relacionar com mulheres também. Precisamos entender e começar a encarar nossos corpos sem pudores, mas como indivíduos capazes de nos proporcionar prazeres. Sejam eles voltados ao carinho, ao abraço, o consolo, o companheirismo, sejam eles ao prazer sexual, o beijo, ou mesmo os dois. Além disso, ultimamente comecei a me libertar de uma sensação que tive que esconder de mim mesmo por um bom tempo. A opressão que a sociedade me oferece por me colocar contra a maré, é concreta. Na escola eu senti isso, na rua eu sinto isso, nos âmbitos sociais e até mesmo dentro de casa. Ser homossexual é ser diferente. É viver numa miséria sexual (sobre esse assunto já escrevi outros textos que podem ajudar melhor na compreensão da minha construção sexual e comportamental). Na verdade, foi difícil pra ambos aceitarmos a sociedade que vivemos. E isso fez com que eu não fosse sensível com os seus limites e você não fosse com os meus.
Tem dois vestidos no meu quarto, que são meus. Comprei os dois nesses últimos meses, porque sempre quis usá-los. E faça o esforço de pensar comigo: qual o problema de eu utilizar uma roupa curta? Faça o esforço de esquecer que há uma divisão de gêneros, que nem sempre houve, que há roupa masculina e feminina, e se pergunte porque que é errado ou ruim que nós ultrapassemos “os lugares determinados para nós”? Sou contra aceitarmos quietos que podemos ou devemos fazer isso. Defendo que sejamos livres e possamos utilizar o que nos agrada. Eu me sinto bem de vestido, eu me sinto bem de maquiagem e isso não tem nada a ver com a minha orientação sexual, nem mesmo com aceitar meu corpo. Gosto de ter um pênis, gosto da minha barba, mas gosto também de tudo isso e não vejo razão para negar a maquiagem ou essas roupas.
Quero me abrir e quero que você se abra enquanto Tânia. Quero que avancemos no que conhecemos um do outro. Quero que sejamos honestos e que sejamos inteiros e não restos.

Com todo amor que há neste mundo,
Do seu grande companheiro e amigo,

Ces.

Relações

8 de Maio de 2012

Quando discutimos as relações tentamos separar as sexuais das demais relações que nos penetram tanto mais do que as relações sexuais que não precisam de qualquer penetração para existir, basta o toque. Não sei desde quando, até porque não me lembro um dia em que não tentei entender meu corpo e minha sexualidade. Foram sem dúvidas, as condições objetivas que me fizeram trotskysta e militante revolucionário. Se as relações amorosas são aquelas que se tem amor, não podem ser descritas apenas para relações a dois, o namoro monogamico que individualiza dois de uma só vez. É nessa ilusão que os solteiros - porque há nome dado a nós também, e dizer nós, parece pra muitos uma vergonha - não tem com quem se relacionar, eu me coloco (ou deveria, ao menos).
Pensamos nós em uma política independente para a nossa própria sexualidade e nossas relações afetivas? Somos individuos e não podemos abandonar nossas especificidades e nossas necessidades individuais por qualquer outro individuo, não pertencemos a ninguém, nem nosso corpo (pênis, vagina, cerebro ou coração). Pertencemos únicamente a nossa época e as nossas atitudes, que as minhas estão entregues a revolução; E não é um discurso vazio de uma revolução abstrata, que tende a ser boa, mas uma mudança radical da sociedade que consiga a emancipar a humanidade de toda a opressão que nos faz tornar e nos tornarmos meros objetos.

A maioria das minhas relações sexuais são impulsionadas pela miséria sexual objetiva de meus parceiros e a minha. Sou ali uma valvula de escape para a vida omitida de tantos homens e no entanto, procuro quase sempre aqueles que não se atrem por mim, porque meu tesão foi construido como de uma mulher. Sou heteronormatizado da cabeça aos pés. Mas isso não é a resposta para minhas roupas e esmaltes, batons e tantas outras tintas coloridas que utilizo. Meu genero e minha sexualidade, apesar de unificados pelo capitalismo, são extremamente separadas. Pena eu não ter autonomia e liberdade para escolher por mim, sem influência da repressão e dos valores cristãos que a sociedade capitalista me bombardeia.

Sou mulher, de tantas formas, mas não biologica. Sou homem por outras, mas torne-se embaçado quando tento entender o quanto tem de querer ser e querer compartilhar com alguém. Por isso, me é certo que construiram minha sexualidade, porque eu não a escolhi. Porque jamais recusaria compartilhar minha vida com alguém pelo seu gênero, pela sua biologia.

Meu sexo é vergonhoso. É desesperado. É asfixiado.
Por mais que eu tente me recompor, eu não consigo me indentificar como individuo pleno. Sou arremeçado a cada golpe de desinteresse que meu corpo traz aos heterossexuais que se posicionam assim de nascença. Ao padrão que eu não sou e mesmo assim, como Virginia ouvia e depois escrevia, as vozes dizem que é bonito. Essas vozes - sociais - que nos deixam ezquisofrenicos e nos causam mortes, tantas mortes quanto as políticas quanto as físicas. Perdemos a cada dia tanto mais, por não sermos capazes de dizer.

- Estou em crise.

domingo, 6 de maio de 2012

Como foi:

6 de Maio de 2012

Durante minha vida inteira, eu não pude ver quem eu realmente era. Somente a militância foi capaz de me proporcionar a realidade numa perspectiva decente. Méritos de meus avanços já foram socializados, às minhas referências de mulheres me rondaram para que eu pudesse refletir eu mesmo. Jenifer, uma das melhores representações de qual mulher reivindicamos e qual o papel que as  mulheres podem cumprir pro avanço da humanidade. O seu avanço refletiu materiamente na minha vida. Pude vê-la como referência, da mulher que eu não via em mim. Foi ela, a feminista revolucionária, que me fez combater meu machismo sobre mim. Foi ela, a mulher dos melhores valores humanos, me encantou com suas potencialidades.

Disse tudo. E a mulher que me libertou, me ofereceu a chance de me libertar agora por mim. A revolução está avançando... Sinto que estou avançando. Porque minha voz existiu. Assim como a cada-dia, eu me conheço mais e permito conhecer os outros. Uma troca mais honesta, isso eu conquistei.

PS.
Quando disse, ela sorriu.
Eu não precisei de nenhum companheiro, tive meus camaradas.
Que se preocuparam comigo. Vesti a blusa, não por covardia, por me dedicar a tarefa a revolucionar esse mundo onde eu preciso pintar as unhas e ficar com elas apenas até o próximo dia de trabalho. Eu que fui criado dentro de uma familia pequeno-burguesa quebrada, que me deu uma infância sem confrontos. Meu medo e falta de experiência em brigas, me faziam cada dia mais me tornar submisso. E hoje, lutarei pra que todas as pessoas possam se dar a deliciosa possibilidade de construir seu corpo, construir nossa sexualidade e nossas mentes.

Quero mentes livres, quero corpos livres!
São, estes textos, que dedico a camarada Jenifer.
Ela sorriu, e disse que me amava. E eu aprendi a amar.
Obrigado.

sábado, 5 de maio de 2012

Vendo pela primeira vez

 de Maio de 2012


Hoje foi a primeira vez que eu realmente fui e vi os camaradas com quem eu construo um novo mundo. Retomamos nossos sonhos através da dor que nos une. Que lamentável a vida se tornou. Mas restaram nós, a resistência que construirá o novo mundo. Os rostos cheios d’gua mostraram materialmente que não enlouquecemos. Só tem como existir, militando. Não haverão saídas, nem estratégia correta descolada de nossa humanidade.
               
Choremos, pois assim mostramos a contradição. Choremos, pelos trinta anos de restauração que roubaram de nós nossas vidas. Pois assim nos tornamos – como nunca – abertos a revolucionar nossa espécie humana.
               
Como nos constrangemos a dor, que é no fim, o que nos une? Perder Camilinha é ver que é impossível viver, como vivemos. Sentimos o luto de todas as perdas e todas as pressões. Não somos imunes, apesar do partido. Hoje, viramos o espelho que só nos permitia vermo-nos, individualmente, e fizemos ver um no outro. Nunca fomos tão camaradas, nunca fomos tão vivos, tão humanos. Humanizamo-nos para não aliernarmos nossa luta.
Somei, por cinco horas, o que construí nesse meu corpo com as demais sensibilidades que ali se manifestavam. Ainda que algumas, por silêncio. E nelas, me reconheci. Não estava mais só, estava com a minha classe. Mesmo que não fisicamente com todos, estavam ali, representados por aqueles que se proporão uma nova forma de se viver .


Quando eu tinha 11 anos, eu era bem próximo da minha irmã. Meu pai era pastor e minha mãe, uma dona de casa submissa ao marido que nunca o amou e agora olhava para sua vida indignada do que ela se tornara. Cresci com esse peso de saber que minha mãe era infeliz, mas ainda na época eu tentava me aproximar cada vez mais da minha irmã. Ela já com 13, 14, começava a ficar com um menino do meu prédio. Lembro-me de um dia eu pedir pra ela brincar comigo de teatro e ela falar que em troca teríamos que, com outras palavras que eu não lembraria agora, “transar”, na verdade “roçar” porque ela mantinha a calcinha. Acreditem ou não, eu não sabia o que era sexo. Tanto não sabia, que após aquilo, eu ainda não tinha nenhuma noção que havia tido qualquer relação com a minha irmã. Quando fiz treze anos, eu tive minha primeira relação sexual com um menino que namorei depois por mais um ano e meio. Sobre as duas situações, eu sabia que meus pais não podiam saber. Mas somente na terceira vez que eu transei com esse menino, que eu entendi que estava fazendo sexo. (Sendo que nestas três primeiras vezes, eu não gozei).
Sempre foi um tabu lidar com isso, antes de entender a origem da família e como isso não passa de uma moral atual que restringe as relações sexuais por questões econômicas. Ainda assim, isso criou uma relação pouco confortável entre eu e minha irmã. Minha mãe, foi a tentativa da mulher progressista no capitalismo, tentou ao máximo lidar com minha sexualidade e com minha sensibilidade ao mundo. Mas com os limites de sua própria consciência de classe, não seria capaz de ser mais do que uma mulher presa a posição social de mãe (cuidadora dos filhos, da casa e não mais mulher-sexuada) e hoje me oprime pelo senso-comum.
Comecei a ter dificuldade para chorar quando tinha 13 ou 14 anos. Motivos para tal, não me faltaram nos anos seguintes. Mas sim, espaço. Onde eu me sentisse vivo, ou pelo menos vivendo algo que fosse capaz de me expressar. Chorei depois quando meu pai morreu, mas só quando seu coração parou de bater até eu ir dormir. A perda do meu pai, em 2010, fez minha mãe ficar muito abalada, o que me fez ter de espera-la para buscar minha independência. Depois não chorei mais, nem por ele, nem por ninguém. Me senti uma rocha e sabia que não era por fortaleza, mas por aparência e falta de relação comigo mesmo. Hoje, eu chorei de novo. Chorei por ver que era a dor que ligava todos nós dentro daquela sala e durante todos esses meses e permanecerá nos mantendo conectados até derrubarmos essa lamentável forma que foi feita a vida pela burguesia.  
                Quando escrevi meu balanço passado, eu permanecia na defensiva que sempre tive com as discussões LGBTTs e mais profundamente sobre mim mesmo. Era quase como falar querendo não ser ouvido, só por desabafo, pouco convicto que seria levado a sério. Carreguei até hoje essa submissão e falta de segurança em colocar as discussões até o fim. Fez parte da vida clandestina que ser homossexual te faz viver. E na abstração que se adquiri para lidar com isso durante a adolescência. Eu sempre criei uma imagem de mim que eu nunca fui. E como não nos vemos o tempo todo, qualquer ação – de mexer no cabelo, por exemplo – eu via mentalmente com outro reflexo. Sempre feminino. Reprimi até me convencer que era homem e que assim que eu deveria viver. Por muitas vezes tentei transmitir minha confusão de identidade e de como me relacionava com todos. Minha miséria sexual foi se tornando cada vez menos fácil de lidar e o desejo de uma relação monogâmica heteronormativa prevalecia a qualquer outra convicção que eu tentei assumir. Ainda hoje, me parece que seria mais fácil ter alguém para me apoiar e sentir esse “amor” que nas relações a dois se constrói. Mesmo o raciocínio não prevalece aos bombardeios da ideologia dominante.

                Minha fragilidade com a sexualidade é talvez caso de tratamento. Pois ao mesmo tempo que eu sinto atração. Eu hoje pouco sei me relacionar fisicamente com as pessoas. Tenho pouco contato com meu corpo e pouca segurança nele. As heteronormas colocadas sobre mim que contribuem na construção do meu desejo também contribuem para minha relação conturbada com meu prazer. Minha sexualidade é esquizofrênica. Implora por ser ouvida, mas morre de medo de tornar realidade. Não me relaciono fisicamente com as pessoas, porque concretamente, pouco tenho oportunidade para isso. Assim, me torno miserável a ponto de me contentar com as “sobras” e possibilidades limitadas (isto é, camaradas bêbados que decidem se “libertar”, camaradas que veem o beijo como uma expressão de carinho – mas no fundo, não passam desse estágio, não sentem prazer e tesão num corpo masculino -, entre outros momentos pouco reais e verdadeiramente conscientes de ambas as partes que me relaciono).

 Quando comecei a militar, não rompi com nenhum desses atrasos. Pelo contrário, menos me moralizei para tomar as discussões LGBTTs e ainda sentia que minha exposição soava despolitizada. Porque o politico era a discussão de projetos e de estratégia. Mas minha vida ficava completamente por fora dessas duas opções. O dia-a-dia me enlouquecia e a militância não mais correspondia a essa agonia que era acordar, trabalhar e ir pra faculdade fingindo não ter nada errado. Encontrar com todos meus amigos e saber que nenhum deles poderia estabelecer uma relação mais profunda comigo. Que a homofobia era encarada como um assunto já superado, e mesmo assim eu não conseguia conversar com nenhum heterossexual sobre quem eu estava interessado. Foi então a Cda Jenifer que me ajudou e me deu o apoio possível para eu ir pra faculdade com meu vestido. Ainda com muito constrangimento, completamente na defensiva entrei na sala de aula e vivenciei a homofobia. O que me atacava agora era saber que ali [na universidade] eu poderia me dar o “luxo” de ser libertário, mas longe dali, eu estaria sujeito a agressões e a própria morte. Meu emprego começou a ficar insuportavelmente cansativo, porque nele eu não sou assumido. E isso é irritantemente homofobico, eu precisar assumir (ou notificar todos meus colegas de trabalho, chefe e pacientes) que minha orientação sexual é homossexual, uma vez que todos já veem a heterossexualidade como o normal, mais comum, a norma até que se PROVE(como???) o contrário.
                Acumulado tudo isso, eu comecei a acreditar que eu estava me vitimizando perante a toda essa opressão. É claro que a alternativa que eu me ofereci foi me culpar e não encarar a realidade que eu era a vitima, mas minha resposta a essa questão seria revolucionária. Comecei então a escrever [para a organização], mas o que adiantaria? Eu sai do gueto LGBTT e agora poucos são os que convivem com essa opressão. Poucos vivenciam na pele diferentemente daqueles que não precisam de explicação ou de informações, basta falar o que significa descer a Augusta depois das nove horas que saberiam: “melhor andar como homem, do que apanhar por ser quem você é”.
                Hoje abrimos então o espaço para que possamos enxergar a fundo quem somos e o que nos trouxe aqui. Não sairemos daqui, isoladamente, ou sairemos todos juntos ou morreremos tentando. Não será possível eu me emancipar se o mundo todo já foi contaminado pelo modo de vida burguês e anti natural que nos foi imposto. Mas não é preciso também viver na crise permanente. É preciso, por isso, que eu escreva a todos os camaradas como é ser homossexual e como é ter sido travesti por tantos anos e nunca ter podido me aceitar.

Me lembro de olhar para outros camaradas e suas posturas “guerreiras” me fazerem me diminuir. Pois eu nunca saí da defensiva em relação a mim mesmo e as discussões LGBTTs. Por isso, a ausência do Fauze me atinge tanto. Além de todas as relações pessoais, me sinto ainda mais isolado para abrir a discussão e necessidade que sinto – e que a esquerda toda tem – de uma politica para os LGBTTs. Porque me deixa em crise de não termos uma travesti no partido e mais ainda, de não termos nenhuma politica, nenhuma dimensão, nenhum previsão de quando seremos capazes de ganhar essas pessoas para a vida política. Não será a moral guerreira que determinará nossa militância, mas estou caminhando para fortalecer minha segurança e assim poder ter voz para minhas próprias dores, para levar o trotskysmo na ofensiva.
               

quinta-feira, 3 de maio de 2012

Identidade

3 de Maio de 2012

Perguntaram-me: "Mas você quer ser travesti?". Respondi que lutava contra o machismo. Perguntaram-me "Você sempre foi assim?". Respondi "Eu pouco fui e eu sempre fui muito pouco".

Respondi a mim mesmo, me identifico assim, mais humano do que gênero, mais liberdade do que limite. Mais próximo de mim, do que do que me fizeram a vida toda. Meu corpo também não é algo dado, mas construido.

Combati o machismo que menos me preocupei. O que me oprimia.

Então vi: eu, em terceira pessoa. Eu, agente do meu machismo e da minha homofobia. Eu, travesti.

Eu, contradição.

quarta-feira, 2 de maio de 2012

Salto Mortal (às mascáras que já não cabem ou jamais couberam)

2 de Maio de 2012
Eram quatro crianças e uma negra. Tinham a mesma altura, mas não o mesmo cabelo. Sentia-se menos diferente do que de fato era. Sentia-se exceção, tanto do resto do mundo, quanto dos seus. Corriam. Claro que todos descalços corriam, como quem quer fixar a cara nos afalto que tenta se manter, pra deixar sua marca, tanto tenta que distorce, tanto tenta se alcançar que perde o folego. E ali corriam e ela ficava pra trás. Mas só ficava pra trás na corrida, porque seus saltos - de consciência - eram tão altos quanto eram mortais, a quem ela fingia ser. Diversas vezes, era achada assim parada, assim sem fala. Era ali, naquele instânte que ela caia, do salto passado. Entendia e caia, sem poder se apoiar nos pais que tinham decidido sentar no caminho, os amigos que mal percebiam que ali era um caminho. Foi-se então que chegaram ao ápice, sentavam, os espertões.

- Hoje sonhei um pesadelo. - Assim, dizia o primeiro, reproduzindo a inocência de Guimarães, e mal sabiam ler - E foi horrivel, porque todo mundo me olhava e se afastava. Acredita que uma velhinha até atravessou a rua com medo? De mim? Uma criança. - Se vira, tão frágil e tão real da sua condição de pequeno, que esquecia a forma que o mundo olha diferentemente as diferentes crianças. A negra, que não era criança nem pros homens que ali apostavam suas fichas em quantos meses faltavam pra nascer a primeira criança - esta sim, criança - muito menos para si, que era obrigada a saltar, quase todos os dias do conforto que não tinha em casa, para o enfrentamento ou o próprio suicidio. Ela então, interveio:
- Eu sei. - Soltou uma lágrima, incolor como queria ser. Mas errava. E logo a seguir entenderia, que eles jamais entenderiam. Surpreendeu-se.
- É assim, Neguinha, que você se sente? - Chocou-se.
- É por isso que quando vamos comprar balas, você fica fora da loja? - Entendeu o segundo.
- É verdade, aquele dia o porteiro interfonou quando você chegou e nós entramos direto...
- Vocês entendem, mas não sentem. Então, não entendem.
- Vamos entender agora. - Sorriu o menino de cabelos loiros, e enfiou a mão no barro que a chuva havia lhe dado, quase como uma luva. Passou no rosto, e olhou pros outros esperando por resposta. Todos eles passaram, acompanhando o lider, o amigo.
Sairam então correndo, rindo. 'Somos negros, somos igual a Neguinha'. Ela correu atrás, por um instânte acreditou não ser mais só. Acreditou que assim entenderiam. Mas por um dia? Parou-se. Obrigou-se a parar, a fechar o riso. A olhar pro seus amigos, que amava, e sentir-se pior do que antes. Eles brincavam agora com o que ela era e sofria em ser. Eles riam, porque podiam. Porque era extremamente fácil pra eles serem o que quisessem ser, porque não eram. Não havia um peso esmagador, ou uma falta de oportunidades. Lavariam-se e assim deixariam todos os defeitos na pia, enquanto o lindo rosto branco encaixaria em qualquer outra propaganda.
Mas aí, houve uma contradição que esmagaria uma amizade. Da inocência de um criança e querer modificar o mundo e acreditar em que as coisas seriam resolvidas assim, que um sorriso no rosto dela significaria o mundo se render... E da mascara branca que ela não podia vestir, e assim, mantinha-se com a outra - que depois aprenderia a se orgulhar - todas as manhãs, tardes e noites. No riso então carregava a vergonha, que não era dela.

Se despediu, pra outro salto. Este que deixou cair o medo, a vergonha e a inocência. Não era criança, não podia ser, não a deixaram ser, precisava entender logo, desde cedo. Ela era cor que a vestia. Assim born woman. Assim sem escolha, mulher preta.

Miséria Sexual

 de Maio de 2012

A minha miseria sexual faz com que o meu desejo sexual seja feito só de desespero. Enquanto todos dormem, depois de um longa noite de diversos liquidos alcoolicos, talvez os corpos possam avançar. Talvez este camarada encoste no meu corpo. É exatamente o que eu penso, é exatamente nessa perspectiva que vivemos, dentro do capitalismo. Buscando uma oportunidade - mesmo que sem vontade - que consiga nos satisfazer. E ela não acontece.

A minha miséria sexual é causada e recriminada pelos mesmos. Minha miseria sexual é causada por ser contestadora. Eu quero e luto pelo direito ao meu gozo e ao meu corpo! Não tratase de amor, eu amo de todas as formas e generos. Mas o tesão, este foi construido com bases tão solidas que não vejo capacidade de descontruí-lo, até mesmo, porque não acredito em mudanças e avanços plenos dentro do capitalismo. Somos a máxima contradição, de proposito. Queremos expor, queremos escancarar as contradições e a farsa que é a ideologia burguesa. 

Tenho um companheiro que adoro, mas ao mesmo tempo não existe nada mais desesperador do que encontrá-lo. É notavel a sua ansiedade e sua procura em me ver. Porque comigo, sabes que é pode acalmar sua miseria. Me utiliza assim como o utilizo, porque sofro da mesma repressão. É exatamente dentro disso que se vê como única oportunidade de estabelecer uma relação profunda dentro de um namoro independente da forma que este relacionamento é construido, independente dos papeis atribuidos. Independente da possibilidade do avanço entre estes que se submetem a tudo, pra não se sentirem mais solitarios.

Ser homossexual não significa ser revolucionario. Nem mesmo ser de esquerda, progressista ou ativista. Mas significa ser oprimido. Significa ter uma miseria sexual, principalmente nas fileiras da classe trabalhadora, onde vive o sentimento mais conservador e atrasado, criado justamente pela burguesia para dividir ainda mais os trabalhadores. Essa deseducação continua ao nossos trabalhadores é fruto dessa restauração burguesa que finalmente a crise veio para questionar. Que paz social é essa que assassina negros, mulheres e homossexuais todos os dias? Que paz é essa mediante a toda exploração diaria dos empregos terceirizados? Que país potência pode ser esse, às custas de haitianos e operários brasileiros sob a ordem para o progresso de uma burguesia capenga? 

Vivemos em tempos de crises, guerras e revoluções. E é necessario que os oprimidos dispertem atraves de uma estratégia revolucionária capaz de emancipar a humanidade de conjunto. É preciso que as discussões LGBTTs que não tem patria ou qualquer lugar de origem, sejam encarados pelos seus próprios militantes LGBTTs para que se inicie um movimento com tradição de Stone Wall. Ligado diretamente aos trabalhadores, porque estes são os protagonistas da revolução. E são, não por um fetichismo na classe operária ou simplesmente porque foi há 95 anos. Mas sim, porque estes estão localizados nos principais postos onde se gera além da economia, os mantimentos e os mecanismos para a sobrevivencia deste sistema capitalista. 

Quinta-feira, eu me senti confortável em construir meu gênero, no mesmo sentido, descontrui meu prestigismo e me vesti como realmente quis. Saí de casa com um vestido preto, uma melissa e um laço vermelho na cintura. Andar na rua, tomar o onibus, passar pela catraca, chegar na universidade, entrar na sala de aula, fumar um cigarro no intervalo, foram todas atitudes pensadas. Usar o banheiro foi praticamente uma guerra. Ao menos, tinha alunos ao meu lado. A própria segurança feminina sorriu em solidariedade, enquanto os seguranças-homens mantinham a sua homofobia camuflada pelas "obrigações de sua função".
Tive tremedeira, tive crise, tive um dia mais próximo de uma realidade distante. Distante pra nossa organização, distante da universidade, distante do meu trabalho (ou a maioria dos trabalhos que já tive). É sem dúvida, distinto viver a opressão de existir. É palpavel e depressivo a sensação. Me aproximou mais do que é ser mulher, me aproximou mais de algumas relações que se mostraram inteiramente respeitaveis. E também fortaleceu minha moral. Sou travesti. Sou homossexual. Sou mulher. Sou a contradição viva que se coloca a tarefa de enterrar o capitalismo, seu conservadorismo e a classe dominante que luta para manté-lo. Lutemos por um movimento LGBTT anti-capitalista, anti-imperialista, anti-policia. Lutemos por um movimento LGBTT a serviço dos trabalhadores e da emancipação humana. Lutemos por um movimento ligado ao marxismo com predominância estratégica. Porque somente isso é capaz de responder os desafios que a crise mundial coloca como tarefa à juventude, ao partido revolucionário e aos trabalhadores.

AVANTE!