2 de Maio de 2012
Tânia,
Há anos venho te chamando de mãe e desde sempre viemos vivendo sem refletir mais profundamente o que é isso que chamamos de vida. Nos últimos dois anos, vivenciamos mudanças drásticas em nossas vidas, uma delas foi a perda de seu companheiro e meu pai. Sem dúvida, isso desestabilizou toda nossa família, mas também fez com que nos reestruturássemos de forma mais libertária. Sei que tenho cada vez mais me afastado de casa, e isso parece cada vez mais um problema, quando não deveria ser. O motivo de eu te escrever é uma tentativa de te mostrar como a realidade do mundo anda distorcida e pouco temos contato com ela. Primeiramente, queria explicar sobre a origem da família, que foi a aula que tive nesta sexta-feira (27/04). Os primeiros seres humanos foram completamente libertos, não havia moral, não havia instituições, nem mesmo religiões monoteístas. O que havia eram pessoas que se relacionavam entre si. As relações sexuais pouco tinham a ver com a reprodução, pois não era obvio (como de fato só se tornou graças ao avanço da ciência) esta ligação. Por muitos anos ninguém sabia como uma mulher engravidava. Essas pessoas se organizavam de uma forma distinta da nossa, as crianças chamavam de mãe todas as mulheres da aldeia e de pai todos os homens da aldeia. Isto porque todas as mulheres tinham relações sexuais com todos os homens, e a relação sexual que determinava a terminologia de parentesco. Não havia também a compreensão de que um filho, depois que crescido, ainda era filho da mesma mãe. Isto porque, na natureza, existe um determinado tempo em que a mãe fica próxima dos filhotes e depois os abandona. Somente após essa consciência que se houve a proibição de incesto. Primeiramente, entre mães e filhos. A família então se origina da regulamentação das relações sexuais, com a proibição do incesto. É, eu sei, parece algo tão distante a ponto de se tornar surreal. Mas é importante, entendermos como a construção dos seres humanos é uma construção histórica, não divina. Isto é, apesar das religiões e das crenças individuais, existe-se uma história e uma evolução da humanidade. E onde estamos agora e como nos relacionamos com o mundo se explica por essa história e não pelas religiões que começam a explicar o mundo de hoje por hoje. E negam todo o mundo material, concreto, palpável por um mundo idealizado e que submete a vida a espera da vida após a morte.
A primeira forma de opressão de um homem sobre outro, foi da mulher pelo homem. Assim que o homem descobriu a agricultura e a domesticação de animais, ele passou a precisar de terras só pra si e assim a precisar saber pra quem suas terras ficariam após sua morte. Daí, a proibição da mulher a ter relações sexuais com outros homens. Daí, o surgimento do machismo. Trazemos isso pra hoje. A relação que você estabeleceu com o Sergio foi uma relação estritamente formal. Você pouco o amou com paixão, e pouco pode viver sua vida independente e em busca do seu prazer (tanto sexual, quanto nas práticas como yoga, etc).
Esses estudos me ajudaram a entender como se construiu essa forma de organização chamada família. Que hoje, tem a forma burguesa de família. Ou seja, um casamento (na igreja e no cartório) heterossexual que tenha filhos. Mas pensando como Tânia, o que de fato te faria feliz? Quando foi que respeitaram o seu direito enquanto mulher para ter uma vida independente? O que fizeram da sua vida e o que te fizeram fazer dela? Hoje, você ainda mantem sua tripla jornada de trabalho. Trabalha na UBS, arruma a casa e ainda cuida dos dois filhos (que já não mais PRECISAM de suas atividades domésticas). Até quando a mulher quando se torna mãe terá que abrir mão de sua vida inteiramente pelos filhos e abrir mão de seu próprio corpo, de seus próprios desejos? Eu já te disse que chegou a hora de você se posicionar em frente a sua vida. Não é possível que viva sua vida inteira em função dos outros, sem aproveitar a suas próprias capacidades e sensibilidades.
Uma vez estabelecido essa relação entre você e a sua posição social na família dentro do sistema capitalista, é preciso entender qual o papel da mulher nessa sociedade. As mulheres não tem qualquer visibilidade a não ser as brancas, magras e ricas. Este padrão completamente burguês nos pressiona a não aceitarmos nosso corpo, a alisarmos nossos cabelos e a buscar emagrecer de formas anti naturais. Vivemos nós de formas anti naturais, dormimos menos do que gostamos, passamos a vida toda trabalhando em atividades que não escolhemos, não temos educação gratuita e de qualidade para todos, não temos saúde como um direito garantido, não temos direito de explorar nossa consciência e nosso corpo com avanços da tecnologia, seja com substancias legais/ilegais seja com o conhecimento cientifico que é restrito aos ricos.
Chegou a hora de mudarmos nosso estilo de vida!
Sinceramente, eu me sinto muito fragilizado em retornar para a casa dia sim, dia não, e perceber que ainda se vive dessa forma. É dentro do partido político que encontro uma contra pressão a me adaptar a esse mundo doente que faz com que os seres humanos vivam de forma tão anti natural que tenham medo da morte. Que não entendam o mundo tal como ele. Que sejam levados por mitos e pré-conceitos, que uma mulher ria de outra na televisão sem perceber que está se oprimindo ao fazer isso. Porque somos nós, as mulheres, os homossexuais e os negros que sofrem essas opressões diariamente.
Existem pessoas conscientes que fazem com que vivemos alienados. Achando que a vida das novelas de fato existe e que a sociedade não é divida em classes. A única forma de nos emanciparmos, de mudarmos o mundo, é adquirindo consciência de que este mundo em que vivemos é doente e é possível muda-lo. Assim como a história da humanidade foi transformada sempre, há hoje uma abertura revolucionária de mudarmos o rumo da história de uma vez por todas. Para que os seres humanos saiam da pré-história e possam finalmente viver livres dessas opressões. Vivam fora de um sistema que veja a vida como mercadoria. Que as futuras gerações possam viver intensamente e não perder tempo em serviços que de nada acrescentam os seres humanos e são exercidos pela classe trabalhadora pela deseducação dada a nós pela burguesia, como são os garis, como são as empregadas domesticas, que são trabalhadores dignos que ocupam cargos que poderiam ser superados se cada um fosse autossuficiente e conseguisse no mínimo se manter.
Sei que na concepção de mundo que tínhamos, eu abandonei a família e fui viver por ai, mundo a fora. Mas o esforço que hoje faço é para mostrar como essa concepção é criada para controlar nossas vidas e nos submetermos ao limite de consciência e de prazer. Eu desejo para você, Tânia, uma vida plena. Não como mãe, esposa ou qualquer outro papel que apenas sirva. Mas como mulher, como ser humano, como individuo, que seja capaz de agir e refletir a vida a partir de si mesma. Eu desejo que sua existência seja plena e seja vivida intensamente. Desejo que você rompa os padrões da sociedade para poder sentir novas experiências e não se sujeitar as opressões e as depressões causadas pela sede de lucro dos grandes empresários que produzem as propagandas, os novos produtos que consumimos sem necessidade, das novelas e dos padrões de beleza (tanto que queremos ser, como que desejamos).
No fim, escrevo pra dizer que te amo. Mas diferentemente da forma com que os filhos amam as mães. Porque não te amo por termos sido ligados socialmente, te amo pelo esforço infinito que você fez em ser o que se tornou. E vejo que os limites e as opressões que você exerce são criadas pela superestrutura, não por vontade sua. Sair de casa é dar um passo a frente da nossa libertação de conjunto. Tanto em você se responsabilizar menos por mim e ter mais tempo pra si, para até mesmo redescobrir o que é ser Tânia e o que é que você gosta. Quanto para que só reste nosso amor e não mais essa relação estabelecida pela sociedade capitalista. Até porque, a maioria dos filhos amam suas mães, mas não as mulheres que estão através desse papel social. Não quero que você se sujeite a cuidar da casa e preparar minha comida, quero que você se coloque no papel de viver sua vida e se realizar enquanto ainda está viva.
Sei que também fui pouco paciente contigo em toda essa transição. Sempre fui de jogar as bombas, as verdades e fui pouco sensível para entender o quão difícil também era pra ti. Também foi difícil pra mim, até hoje é. Porque a busca por entender o que sou e o que almejo ser é uma busca cheia de contradições. Há um certo tempo, queria ser mais aberto com você e somente agora consegui acertar minha cabeça para poder escrever esta carta e me propor a encarar a situação. Sempre gostei de homens, e hoje é mais claro ainda como isso não é uma escolha, mas sim uma construção social que me limita a não me relacionar com mulheres também. Precisamos entender e começar a encarar nossos corpos sem pudores, mas como indivíduos capazes de nos proporcionar prazeres. Sejam eles voltados ao carinho, ao abraço, o consolo, o companheirismo, sejam eles ao prazer sexual, o beijo, ou mesmo os dois. Além disso, ultimamente comecei a me libertar de uma sensação que tive que esconder de mim mesmo por um bom tempo. A opressão que a sociedade me oferece por me colocar contra a maré, é concreta. Na escola eu senti isso, na rua eu sinto isso, nos âmbitos sociais e até mesmo dentro de casa. Ser homossexual é ser diferente. É viver numa miséria sexual (sobre esse assunto já escrevi outros textos que podem ajudar melhor na compreensão da minha construção sexual e comportamental). Na verdade, foi difícil pra ambos aceitarmos a sociedade que vivemos. E isso fez com que eu não fosse sensível com os seus limites e você não fosse com os meus.
Tem dois vestidos no meu quarto, que são meus. Comprei os dois nesses últimos meses, porque sempre quis usá-los. E faça o esforço de pensar comigo: qual o problema de eu utilizar uma roupa curta? Faça o esforço de esquecer que há uma divisão de gêneros, que nem sempre houve, que há roupa masculina e feminina, e se pergunte porque que é errado ou ruim que nós ultrapassemos “os lugares determinados para nós”? Sou contra aceitarmos quietos que podemos ou devemos fazer isso. Defendo que sejamos livres e possamos utilizar o que nos agrada. Eu me sinto bem de vestido, eu me sinto bem de maquiagem e isso não tem nada a ver com a minha orientação sexual, nem mesmo com aceitar meu corpo. Gosto de ter um pênis, gosto da minha barba, mas gosto também de tudo isso e não vejo razão para negar a maquiagem ou essas roupas.
Quero me abrir e quero que você se abra enquanto Tânia. Quero que avancemos no que conhecemos um do outro. Quero que sejamos honestos e que sejamos inteiros e não restos.
Com todo amor que há neste mundo,
Do seu grande companheiro e amigo,
Ces.
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