sábado, 5 de maio de 2012

Vendo pela primeira vez

 de Maio de 2012


Hoje foi a primeira vez que eu realmente fui e vi os camaradas com quem eu construo um novo mundo. Retomamos nossos sonhos através da dor que nos une. Que lamentável a vida se tornou. Mas restaram nós, a resistência que construirá o novo mundo. Os rostos cheios d’gua mostraram materialmente que não enlouquecemos. Só tem como existir, militando. Não haverão saídas, nem estratégia correta descolada de nossa humanidade.
               
Choremos, pois assim mostramos a contradição. Choremos, pelos trinta anos de restauração que roubaram de nós nossas vidas. Pois assim nos tornamos – como nunca – abertos a revolucionar nossa espécie humana.
               
Como nos constrangemos a dor, que é no fim, o que nos une? Perder Camilinha é ver que é impossível viver, como vivemos. Sentimos o luto de todas as perdas e todas as pressões. Não somos imunes, apesar do partido. Hoje, viramos o espelho que só nos permitia vermo-nos, individualmente, e fizemos ver um no outro. Nunca fomos tão camaradas, nunca fomos tão vivos, tão humanos. Humanizamo-nos para não aliernarmos nossa luta.
Somei, por cinco horas, o que construí nesse meu corpo com as demais sensibilidades que ali se manifestavam. Ainda que algumas, por silêncio. E nelas, me reconheci. Não estava mais só, estava com a minha classe. Mesmo que não fisicamente com todos, estavam ali, representados por aqueles que se proporão uma nova forma de se viver .


Quando eu tinha 11 anos, eu era bem próximo da minha irmã. Meu pai era pastor e minha mãe, uma dona de casa submissa ao marido que nunca o amou e agora olhava para sua vida indignada do que ela se tornara. Cresci com esse peso de saber que minha mãe era infeliz, mas ainda na época eu tentava me aproximar cada vez mais da minha irmã. Ela já com 13, 14, começava a ficar com um menino do meu prédio. Lembro-me de um dia eu pedir pra ela brincar comigo de teatro e ela falar que em troca teríamos que, com outras palavras que eu não lembraria agora, “transar”, na verdade “roçar” porque ela mantinha a calcinha. Acreditem ou não, eu não sabia o que era sexo. Tanto não sabia, que após aquilo, eu ainda não tinha nenhuma noção que havia tido qualquer relação com a minha irmã. Quando fiz treze anos, eu tive minha primeira relação sexual com um menino que namorei depois por mais um ano e meio. Sobre as duas situações, eu sabia que meus pais não podiam saber. Mas somente na terceira vez que eu transei com esse menino, que eu entendi que estava fazendo sexo. (Sendo que nestas três primeiras vezes, eu não gozei).
Sempre foi um tabu lidar com isso, antes de entender a origem da família e como isso não passa de uma moral atual que restringe as relações sexuais por questões econômicas. Ainda assim, isso criou uma relação pouco confortável entre eu e minha irmã. Minha mãe, foi a tentativa da mulher progressista no capitalismo, tentou ao máximo lidar com minha sexualidade e com minha sensibilidade ao mundo. Mas com os limites de sua própria consciência de classe, não seria capaz de ser mais do que uma mulher presa a posição social de mãe (cuidadora dos filhos, da casa e não mais mulher-sexuada) e hoje me oprime pelo senso-comum.
Comecei a ter dificuldade para chorar quando tinha 13 ou 14 anos. Motivos para tal, não me faltaram nos anos seguintes. Mas sim, espaço. Onde eu me sentisse vivo, ou pelo menos vivendo algo que fosse capaz de me expressar. Chorei depois quando meu pai morreu, mas só quando seu coração parou de bater até eu ir dormir. A perda do meu pai, em 2010, fez minha mãe ficar muito abalada, o que me fez ter de espera-la para buscar minha independência. Depois não chorei mais, nem por ele, nem por ninguém. Me senti uma rocha e sabia que não era por fortaleza, mas por aparência e falta de relação comigo mesmo. Hoje, eu chorei de novo. Chorei por ver que era a dor que ligava todos nós dentro daquela sala e durante todos esses meses e permanecerá nos mantendo conectados até derrubarmos essa lamentável forma que foi feita a vida pela burguesia.  
                Quando escrevi meu balanço passado, eu permanecia na defensiva que sempre tive com as discussões LGBTTs e mais profundamente sobre mim mesmo. Era quase como falar querendo não ser ouvido, só por desabafo, pouco convicto que seria levado a sério. Carreguei até hoje essa submissão e falta de segurança em colocar as discussões até o fim. Fez parte da vida clandestina que ser homossexual te faz viver. E na abstração que se adquiri para lidar com isso durante a adolescência. Eu sempre criei uma imagem de mim que eu nunca fui. E como não nos vemos o tempo todo, qualquer ação – de mexer no cabelo, por exemplo – eu via mentalmente com outro reflexo. Sempre feminino. Reprimi até me convencer que era homem e que assim que eu deveria viver. Por muitas vezes tentei transmitir minha confusão de identidade e de como me relacionava com todos. Minha miséria sexual foi se tornando cada vez menos fácil de lidar e o desejo de uma relação monogâmica heteronormativa prevalecia a qualquer outra convicção que eu tentei assumir. Ainda hoje, me parece que seria mais fácil ter alguém para me apoiar e sentir esse “amor” que nas relações a dois se constrói. Mesmo o raciocínio não prevalece aos bombardeios da ideologia dominante.

                Minha fragilidade com a sexualidade é talvez caso de tratamento. Pois ao mesmo tempo que eu sinto atração. Eu hoje pouco sei me relacionar fisicamente com as pessoas. Tenho pouco contato com meu corpo e pouca segurança nele. As heteronormas colocadas sobre mim que contribuem na construção do meu desejo também contribuem para minha relação conturbada com meu prazer. Minha sexualidade é esquizofrênica. Implora por ser ouvida, mas morre de medo de tornar realidade. Não me relaciono fisicamente com as pessoas, porque concretamente, pouco tenho oportunidade para isso. Assim, me torno miserável a ponto de me contentar com as “sobras” e possibilidades limitadas (isto é, camaradas bêbados que decidem se “libertar”, camaradas que veem o beijo como uma expressão de carinho – mas no fundo, não passam desse estágio, não sentem prazer e tesão num corpo masculino -, entre outros momentos pouco reais e verdadeiramente conscientes de ambas as partes que me relaciono).

 Quando comecei a militar, não rompi com nenhum desses atrasos. Pelo contrário, menos me moralizei para tomar as discussões LGBTTs e ainda sentia que minha exposição soava despolitizada. Porque o politico era a discussão de projetos e de estratégia. Mas minha vida ficava completamente por fora dessas duas opções. O dia-a-dia me enlouquecia e a militância não mais correspondia a essa agonia que era acordar, trabalhar e ir pra faculdade fingindo não ter nada errado. Encontrar com todos meus amigos e saber que nenhum deles poderia estabelecer uma relação mais profunda comigo. Que a homofobia era encarada como um assunto já superado, e mesmo assim eu não conseguia conversar com nenhum heterossexual sobre quem eu estava interessado. Foi então a Cda Jenifer que me ajudou e me deu o apoio possível para eu ir pra faculdade com meu vestido. Ainda com muito constrangimento, completamente na defensiva entrei na sala de aula e vivenciei a homofobia. O que me atacava agora era saber que ali [na universidade] eu poderia me dar o “luxo” de ser libertário, mas longe dali, eu estaria sujeito a agressões e a própria morte. Meu emprego começou a ficar insuportavelmente cansativo, porque nele eu não sou assumido. E isso é irritantemente homofobico, eu precisar assumir (ou notificar todos meus colegas de trabalho, chefe e pacientes) que minha orientação sexual é homossexual, uma vez que todos já veem a heterossexualidade como o normal, mais comum, a norma até que se PROVE(como???) o contrário.
                Acumulado tudo isso, eu comecei a acreditar que eu estava me vitimizando perante a toda essa opressão. É claro que a alternativa que eu me ofereci foi me culpar e não encarar a realidade que eu era a vitima, mas minha resposta a essa questão seria revolucionária. Comecei então a escrever [para a organização], mas o que adiantaria? Eu sai do gueto LGBTT e agora poucos são os que convivem com essa opressão. Poucos vivenciam na pele diferentemente daqueles que não precisam de explicação ou de informações, basta falar o que significa descer a Augusta depois das nove horas que saberiam: “melhor andar como homem, do que apanhar por ser quem você é”.
                Hoje abrimos então o espaço para que possamos enxergar a fundo quem somos e o que nos trouxe aqui. Não sairemos daqui, isoladamente, ou sairemos todos juntos ou morreremos tentando. Não será possível eu me emancipar se o mundo todo já foi contaminado pelo modo de vida burguês e anti natural que nos foi imposto. Mas não é preciso também viver na crise permanente. É preciso, por isso, que eu escreva a todos os camaradas como é ser homossexual e como é ter sido travesti por tantos anos e nunca ter podido me aceitar.

Me lembro de olhar para outros camaradas e suas posturas “guerreiras” me fazerem me diminuir. Pois eu nunca saí da defensiva em relação a mim mesmo e as discussões LGBTTs. Por isso, a ausência do Fauze me atinge tanto. Além de todas as relações pessoais, me sinto ainda mais isolado para abrir a discussão e necessidade que sinto – e que a esquerda toda tem – de uma politica para os LGBTTs. Porque me deixa em crise de não termos uma travesti no partido e mais ainda, de não termos nenhuma politica, nenhuma dimensão, nenhum previsão de quando seremos capazes de ganhar essas pessoas para a vida política. Não será a moral guerreira que determinará nossa militância, mas estou caminhando para fortalecer minha segurança e assim poder ter voz para minhas próprias dores, para levar o trotskysmo na ofensiva.
               

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