terça-feira, 20 de dezembro de 2016

Olhos

Os olhos sempre abertos
Para a verdade que devasta
Mas também a única capaz
De lançar luz aos dias mais sombrios
A fé daqueles que crêem na humanidade
Com a verdade de que a vida é bela
Mas por ela, ainda temos tanto que lutar
Loiro são os cachos
Jovens de um triste verso
Que não encontrou beleza sequer
Num momento sozinho
Tão sozinho com sua própria dor
Dor tão humana dos que vivem com os olhos abertos
Dor humana dos que nunca foram indiferentes
Dor humana que dói em nós que queremos libertar a humanidade de tamanha dor
Dói hoje um pouco em cada um de nós
Dor coletiva que aumenta o ódio
Pisca e abra os olhos logo meu companheiro
A luta é dura, mas venceremos
Abra os olhos meu camarada
Que sem você é triste seguir nossa caminhada
Abra os olhos meu querido amigo
Quero olhar contigo o novo a ser construído

Sem importância

Numa data sem importância
Nublados olhos
Carregam um significado maior
Do que o tentar dizer
Década amais
Década a menos
Desencontro do corpo
Por vezes
Encontra o momento em cheio
À vontade,
À intimidade
Está permitido o choro, o riso
E também o erro
Há também o que morra em segredo
Mas do que se pode desvendar
Na realidade que precisa de nós
E nós dela
A verdade
Não precisa ser plausível
O peito
Não precisa ser romantizado
O amor
Não precisa de encontro
Sempre
Mas quando se encontra
Não precisa do futuro
Já o é
Durante

Sobre a poesia cega

A poesia
Mesmo de mentira
Desnuda
Arranca a pele
Como água quente
Demais pra poder hidratar
O toque retratado
Os pelos por acaso
São fruto do imaginário
Que não estabelece comunicação
Os olhos que enxergam beleza
Enxergam as cicatrizes
Ou ainda os cortes
Mas só enxergam

Vida que segue

Sem demônios
Sem culpa
A vida crua
Como corpos que dançam
Criam ritmo 
Criam a poesia
Com marcas
Com passado irrefutável
A vida crua
Como o cinza e as cores
Todas as tonalidades que não se pode alcançar
Mas que continuam a existir
Mesmo que não pinte a folha
Vida que segue
Vida que só pode seguir
Pra não deixar-se de ser
Para o único caminho possível
Desfazer-se

Feliz despedida

São poucas vezes...
Horas, minutos, questão de segundos
São raros momentos...
São dias e noites turbulentos
Que desafiam uma sólida mentira
Desmancha a fantasia,
mas a mancha fica
Das idas e vindas
Dessa ensaiada rima

São poucas as vezes
Que se pode reescrever a prosa
Dizer umas palavras amais depois de digeri-las
Que há tempo, lugar, sentido
Que retome a voz ao trilho
Desafiando o ultimato
Que sem se cumprir
Não matou tampouco

É pouca a vida
Que apesar de bela, é sofrida
Por ser tão pouca
Insípida

Mas há felicidade que preencha
Aponta a flecha no sentido do futuro
Porque o passado ainda domina
E o presente é pouco seguro
Pra andar nu mesmo no escuro

Se há finais felizes
Talvez a felicidade seja
Que terminam
Alívio ou encontra de sentido?
Tanto faz
Pois o rio não é o mesmo rio
Nem nós
Mas há quem se alegre com os pontos finais
Que faça piada de memórias casuais
Que veja no silêncio uma morada
O beijo no rosto de agradecimento
Com o sorriso do efeito da trajetória
Se há alegria em se terminar
Uma história
Se há segurança que dispense
A escolta
Se há poesia em não se pensar
Na volta
Fico também feliz
Pela raridade que se tornou
Te reescrever
Agora

Lovely

Diz com a voz que me encanta
Sorri com os olhos que me transpassa
E segura com as mãos as minhas
Me trazendo certeza de que está aqui

Sorri e confia que sou por inteira
As vezes com mais certeza
Que eu
Mas sabe bem
Que com ele a vida é melhor
E insisti pra eu ter calma
Porque não justifica a pressa
Pro cotidiano escolhemos dividir

Agora entendi Virgínia
Quando escrevia sua carta de despedida
Eu que tantas vezes repetia
"Eu vou comprar as flores sozinha"
Não acredito que duas pessoas poderiam ser
Mais felizes do que somos
Mais sinceras do que somos
Mais camaradas do que somos

No teu peito
Me deito pra ouvir seu coração
Tem sidos dias de turbilhões
E quanto mais me sinto forte
Mais quero te ver
E quanto mais penso
Mais penso em você
Enquanto sinto mais
Sinto que o que temos
Cresce, amadurece
E todo dia
Mesmo quando acabar a Primavera
Continua a florecer

terça-feira, 1 de novembro de 2016

Neblina

Repara
voltar ao trabalho
retomar um pensamento
reaprender a escrever com as próprias mãos
Não se diz uma palavra
E a arte entrega o artista
Numa clareza que o cega
De forma que lhe convém
Seguir escrevendo

Mesmo sem destinatário
As cartas não podem ficar guardadas
Escrevem-as
Com desespero
Mas vejo,
Que minha ansiedade
Impotente como eu
Já não pode muito mais

E teus olhos
De nuvem
Fazem do silêncio um cuidado
Na deblina, as mãos conduzem melhor
O sorriso ou a atenção ja não
A poesia cagueta o sentimento
"Te amo mesmo quando não te gosto"
Isto explico numa outra proza
Delírio demais justificar-me assim
Pouco ou muito
O tempo não conserva nada além
Passará
Passará
Passarinho
Até um dia melhor

segunda-feira, 18 de julho de 2016

Se me queres. Queres me trans!


Virgínia Guitzel




Abril





Despertava de um sonho que trazia em si as angustias que conscientemente não lhe davam palavras para procurar ajuda. Era parte, pelos seus hormônios que lhe pregavam peças, com desconfianças e inseguranças que encontravam provas em sorrisos, olhares ou vestígios secretos que sua mente produzia. Mas não era só os hormônios, eram seus peitos que cresciam lentamente provocando desconfiança se seus companheiros os reconheciam e por eles poderiam se interessar. Era à seco: a dúvida se à ela o amor só poderia ser apresentado como um favor, nunca um desejo ou um sentimento sincero. A noite anterior, havia reforçado estas ideias que não lhe fugiam a cabeça. Compartilhava carinho com um amigo-companheiro, dormiam juntos, amavam-se sem paixão de namorados, mas com o desejo de se verem bem. O toque provocava mais nela, do que nele, o desejo, o anseio de alcançar um gozo que já não produzia, graças as injeções quinzenais que escolhera não abrir mão. O gozo não viria, mas talvez se realizaria mais, se pudesse provocar nele esse "atropelamento" que deixava a cabeça muito lerda para acompanhar os suspiros e as contrações do corpo. Ele a tocava, depois parava. Beijá-a, depois parava. E nela, isso provocava a dúvida, senão a beijava para não ser mal educado ou desrespeitoso. Se todo o carinho não era preocupação de não deixá-la triste ou senão cedia um pouco, também por não ter ainda voltado aquela montanha-russa que com ela não poderia ter.

Levantou-se, organizou a cama e desceu as escadas tentando encontrar sentido nas angustias que escondia dele, para não levar a relação a outra dimensão ou duvidar dele à maneira de provocar chateamentos ou mais pena, caso fosse verdade. Sabia que apesar de não haver regras estabelecidas, ele era a melhor relação que ela já teve com um homem, ainda que não fosse uma relação amorosa. Ainda assim, havia amor. E disso ela jamais duvidava. Mas tinha sido pega na sua própria armadilha, de nunca ter se proposto a vê-lo com estes olhos, e pouco a pouco, percebia que ele era alguém fácil para se entregar. E que em muitos momentos gostaria que ele a procurasse pra isso. Permitia-se transformá-lo, ele em poesia, ela em poeta. Mas era mais expectativas que já conhecia, de um sentimento e uma busca que desconhecia. Terminou o café, e na primeira xícara reconheceu que até mesmo pra ela, tinha sido muito pó e pouco açúcar. Mas condizia com suas aflições. É sempre um pouco mais amargo, do que doce.


Adicionar legenda


Voltou ao quarto, já que não havia um lugar sequer que quisesse ir hoje. Acendeu um cigarro vermelho, e pensou em escrever-lhe uma carta. Desistiu antes mesmo de lembrar-se onde estavam os papeis e uma caneta que funcionasse. Ele não poderia defender-se, então ou assumiria seu desamor ou encontraria um jeito de afastar-se. Ela, acostumada com a miséria das relações, buscava se manter independente e nos dias mais tristes, não lhe recorria, porque era pior aliviar-se de pena do que segurar seu coração acelerado e sua mente confusa contra as horas que não lhe traziam sono algum. Torturava-se em guardar neste aspecto um vidro que impedisse adentrar todas essas frustrações, que já estavam abalando o resto todo. Sabia, por experiência, que não se deve entregar-se sem garantir os pés presos ao chão e o coração com algumas reservas. Do contrário, a dependência custaria mais alguns meses até separar-se das ilusões que ela mesma criava. E mesmo sem querer reproduzir seus medos das relações passadas, eles a acompanhavam e não podiam deixá-la em paz.

Lembrava-se que dos homens conhecia apenas duas reações, dos que a desejavam tanto sexualmente que não tinham mais espaço para coragem de desenvolver qualquer relação afetiva, e dos que, assim como este que lhe segurava as mãos, beijava o pescoço e lhe fazia sentir-se humana, faltava-lhe o desejo. Sempre um sentimento incompleto, ou o corpo ou a alma, e ambos nunca se encontraram. Como era difícil sentir-se bem sendo quem lutou para ser. Pensava se mandá-lo embora, ajudaria em algo e não precisava de um minuto sequer para ver que não. Mas sentia-se num beco sem saída. Talvez, esquecer-se disso tudo e aguardar o momento em que ele, pela vida, a deixasse, seria agir de maneira mais segura. Preparar-se para isso, era o que talvez fosse o mais estratégico a ser feito. Talvez depois disso, novos amores impusessem à ela outras maneiras de ver. Mas à essa hipótese, ela não mais queria pensar. Sozinha na casa, poderia encontrar-se e buscar o prazer que a dois não encontrava. Mas não podia, e sabia disso, já não lhe restava libido próprio ou o medo de se machucar nesta busca, já tiravam-lhe este anseio. Até quando? A contradição que lhe atormentava, na vida, era que responder-se negando-se ou anulando-se já contradizia sua atividade militante. Não conseguia sorrir, por aquela tarde. Os castigos secretos que denunciava em outros artigos que escrevia, marcavam nela uma dor silenciosa, vergonhosa e que preferia esconder. Guardar este homem dos seus pensamentos, era novamente separar sua vida artificialmente, mas à ela, falava coragem para mais uma batalha.

Desceu as escadas e deitou-se no chão. Que a prosa lhe trouxesse paz, pediu. Não trouxe. Mas ao menos registrou seu grito aqui.

Maio




O dia todo esteve presente: sorriso, fumaça e este par de olhos que penetram assim como o conjunto do teu corpo o faz, em lugares fechados. Queria beijá-lo desde a hora que o encontrei. Dizem que é no beijo que se simboliza o amor, penso que tenho amado-o demais nesses dias, então. Essa vontade de estar junto sempre vem misturada com a vontade de ficarmos juntos. Mas como eu lhe disse à noite, o conheço, e o amo assim. Livre, passarinho, não se fez abrigo, aprendeu a ser caminho. Quero passar, então devagarinho. E por quanto puder trafegar, irei. Porque é pela maré imprevisível que te quis tão perto.

O anseio de estar junto, do beijo, produzia agonia com as idas e vindas. No fim, deitou-se atrás de mim. Que delicia senti-lo atrás de mim, com teu braço me entrelaçando e teu nariz na minha nuca. Respirava e soprava em mim um pouco do teu charme. Mas subitamente senti o desespero de que poderia ser minha aceitação da miséria, o que só se respondia pela necessidade de me impor para preservar o orgulho que custei a adquirir com os outros cortes que fiz no coração. Levantei-me, fumei um careta, mas o sono não brotava. Fumei então outro. Deitava novamente e esperava que o corpo pudesse provocar alguma mensagem. Ele dormia, não via nada e nem ouvia o que eu não dizia sobre me sentir. É que apesar dele me tratar como sua igual, não seriamos nunca iguais e por isso, sempre me sentia na gangorra presa a areia. Ele, alto como era, podia ver de longe o alvo que lhe pertencia. Eu estava feliz, que ele ainda estivesse brincando no parque comigo. Não conseguia permanecer deitada, e seu toque, era de carinho, mas me trazia tristeza. Então, que ele despertou e pois seu corpo à contar-me quanto gostava de mim. Brincava de me sufocar de sensações. E a dúvida punha a se desmanchar. Ele também queria estar ali.

...

Teus olhos, se fechados, me fazem um convite. Quero estar na tua mente, agora. Quando me olha, sem piscar, sinto uma deliciosa sensação como se me visse metade eu, metade quem eu quero ser. Tuas mãos grandes já me correm pelo corpo, me fazem respirar no ritmo que teu toque quer me conduzir nessa dança. Nossos corpos nus, dizem primeiro. Teu peito quente colado nas minhas costas me abraça, tão forte quanto nós gostamos de abraços, pelados. Teus lábios vão além.  Me encostam com carinho, arranha os dentes, instiga meu corpo a transcender. Só contigo sinto que posso me deixar entregue sem deixar de ser dona de mim. Como você encaixa, me bagunça, me deixa incapaz de pensar! Então, diz. Depois que o corpo já provou, me diz o quanto não me quer magoada, que posso cobrá-lo, que não está comigo por acomodação. Alivia. Como quem prevê que as palavras trazem o complemento à melodia que nossos corpos sabem combinar.

Que bom é encontrar alguém assim pra dividir.

Junho




Dormiu e não acordou com o despertador. Eu levantei, evitando repetir o erro de me desorganizar na espera de que algumas horas amais pudessem reverter minha sede. Ele não é água, por vezes, não é também leite, nem algo que possa molhar a garganta. É ele próprio, a única coisa boa no mar de tanta insatisfação. Mas tampouco, ele também me satisfaz, porque ainda vivemos numa sociedade aprisionadora. Por mais romântica que eu seja ou otimista com seus lábios tão próximos, não cabe nele um peso tão grande dos castigos secretos destinados a mim. "Meu desespero ninguém vê, sou diplomado em matéria de sofrer", traduziu o alarme.

Caminho rumo ao trabalho, compulsório e insatisfatório, trago e solto a fumaça no ritmo do rap que me acompanha, sem me tornar menos só. Não choro, não me permito mais. Mas por dentro, é como se corresse um rio, onde só Woolf pôde se afogar e eu assisto, sem seu alívio. Mais um dia inútil, por certo, de um trabalho que exige bem-estar para manter todas as coisas como são. O problema é quanto mais se mantém, mais desesperador fica. A miséria que vejo nos meus pacientes é reflexo direto da sociedade que me empurra também a miséria. Me reconheço nas fugas, que não me permito, mas invejo. Muito longe de covardia, estes vivem a dor que sentem sem menos de transparecer. Sem refúgios, sem escolhas também.

Ainda sim, não resisto e sorrio quando ele está por perto, porque de repente, tão fora do costume e do meu contexto, quase saio de mim e desse reflexo do espelho, me sentindo eu mesma, carregando um corpo quase morto, mas com um sorriso bobo, apaixonado, de imaginar que um dia isso poderia ser diferente. E que ele, dessa vez, existe.

Se mistura tudo nesses dias, perde-se a coerência. Estou permanentemente doente, e já não me parece que vou melhorar. Penso então que daqui pra frente será isso, assim, permanentemente incompleta como consequência do que me fiz. Do que por conta própria, onde os castigos sociais são secretos e mascarados pelas instituições democráticas, causei aparentemente sozinha em mim. Minha sexualidade talvez tenha sido castrada por definitivo, e é um luto profundo da alma. Primeiro foi o orgasmo, depois minha relação com o pênis que cada vez menos me trazia conforto, ora pela imposição social, ora pela dificuldades de ereção. E agora o mais assustador, eram as dores e a ausência de desejo anal. É uma questão de tempo então, pra que este romance volte ao que pode realmente ser, apenas amizade. Retardo ao máximo, por covardia ou egoismo, mas não poderei evitar. Me atraso ao trabalho, perco a hora, penso e me dedico por vezes em excesso ou exagero, com a sensação do que se vaza as mãos. Meu corpo de só 23 anos já cansado e sem hormônios começa a se desfazer. Grita atoa porque a voz roca já não sai. Ou pior meu corpo volta a fazer-se no sentido contrário. Não sei se os hormônios que voltarão a produzir, negando-me, irão amenizar ou aprofundar as dores e minha disforia. Cada dia que passa fica mais difícil me sentir bem comigo mesma. Combato a beleza cisnormativa e a perseguição ideológica de me disfarçar de cis, mas isso não muda que meu corpo não me representa.

Ele não liga, diz ao menos. E isso importa muito, mas não ameniza por completo. Por vezes desconfio, se me deseja mesmo ou aprendeu a gostar. De alguma forma seu respeito, me afasta, porque parece menor a necessidade do meu corpo se adequar. Mas não é por ele, ou só por ele, agora. De alguma forma sua indiferença disto tranquiliza, porque não é indiferente com o que sinto. Mas por incompreensão, ao mesmo tempo que me deixa mais segura não me vê como objeto, mas por inteira, também me torna mais responsável pelas decisões que só eu posso tomar. Pela primeira vez, sou mais que sexo, que um buraco, escondido e envergonhado. É, de todos os muitos homens que já estive com - nunca junto! - o primeiro que talvez me veja com estes olhos, humaniza.

Parece estranho, assim quem olha de fora, que este contraponto da vida não satisfaça. Mas me amedronta, atropela e por vezes intimida a intimidade que lhe pertence. As mãos dadas, o beijo de cumprimento, o beijo na testa ou no pescoço espontâneo, a mão que aperta minha coxa e os olhos que me atravessam, transpassa rápido demais. Sua língua dança na minha boca, assim como suas mãos e dentes me fazem dançar nua na cama. Ele escolhe o ritmo e eu sempre me deixo levar, mesmo sem saber dançar. Ele ri baixinho enquanto me pergunta se estou bem no meu ouvido, enquanto minha respiração não volta ao normal e meu coração já não separa o corpo da mente, conecta de forma que neste momento eu já sou toda dele, ainda que nem eu, e nem ele, pertença a ninguém. Meu corpo encaixa de forma que não se mede sozinho por sua aparência, mas pelo ritmo que se entrosa e já parece ser uma mistura própria.

Por vezes ele me adverte. "Ficar contigo não é só beijo, quero ouvir você, conversar, passar tempo junto". Como se pudesse segurar meu desespero e a adaptação a miséria das relações, acostumada a ser sempre objeto. Então que tira a migalha da minha mão e joga aos pombos que lhes pertence e me quer por inteira, mesmo quando tenho me sentindo menos de um terço ou apenas um quinto de ser, devido a todo o resto do mundo, que ele é exceção. Me coloca em risco ao me dar outra meta mínima de relação, humaniza de forma a afastar-se de tudo que já vivi com homens. Sei que ele vai embora, mais cedo ou mais tarde volta, até quando eu não sei. Mas como nada é feito pra ser eterno, aproveito e agradeço a noite que passou. Sei que sem ele, volto de novo pro lugar de onde vim e quiseram por todo tempo me convencer que me convém.

Nas ruas, de dia, ele legalizou o toque, o beijo e o carinho. Um detalhe pequeno, discreto e quase invisível as pessoas cis, mas raro as pessoas como eu que raramente são vistas como pessoas. Ele foi o primeiro em 23 anos, que ao me ver, sorri e me beija, sem olhar pros cantos, medir as consequências e evitar ser reconhecido. Me deixa confortável, mas... é sempre uma insegurança de pra aonde isso me leva. Não quero me tornar dependente, por mim e por ele.  Que ele não se torne paterno e nem eu sua, permitindo que cresçamos juntos sem nos dissolver. Mas cada dia mais, quero ele mais...e mais. Um anseio ilimitado de quero ao meu lado. Também porque já não encontro conforto em mais lugar algum.

Felicidade é sempre contraditória, porque a realidade joga a favor por algumas horas, mas também revela toda uma trajetória de solidão. E sei que preciso me manter consciente que mesmo com ele, sou sozinha. Trans, mulher, guerreira, por conta própria, mas também cheia de companhia na luta pela vitória dos nossos. A guerra não para e meu corpo segue como campo de batalha, por isso, os sorrisos me amolecem mas não me deixam esquecer, não permito.

...

Me disse, no breu, deitado ao meu lado, que sou jovem e tenho muito ainda pra viver. "Mas o mundo é uma bosta", ele sabe, eu sei, talvez não seja tão bom assim viver tanto. Mas ele é exceção, e sabe disso, num mundo podre que o romantismo não salva, machuca e por vezes fragiliza. E que ter uma visão alegre não pode colorir o que foi manchado de preto e branco.

Trago outro cigarro com a consciência de que me mato ainda mais. Noutra noite, ele dormia e eu acendia um segundo cigarro, não era apenas insônia, mas uma voz que me perseguia. Ele atrás de mim me abraçava e me esquentava num frio cortante. Uma das suas mãos seguravam a minha, e eu me esforçava para minha respiração e a leve tremedeira do choro não o acordassem. Pensei "Estou com medo de morrer", depois sentindo seu toque, que por vezes se mexia naturalmente, me ardia a alma. Eu que não acredito em religiões ou espiritualidade parecia crer que ele aparecia quando eu ja não tinha mais tempo. Não queria magoa-lo e pela primeira vez me sentia responsável por alguém assim, porque pela primeira vez tinha certeza que ele tinha sentimentos por mim. Não poderia acorda-lo para mais uma notícia ruim. Minha cabeça girava, eram os dois cigarros seguidos, mas o sono estava ainda longe. Não saia da minha cabeça que seguir vivendo assim, era melhor afasta-lo o quanto antes. Que egoísmo te-lo amenizando todo o mundo enquanto me trazia uma brisa de felicidade. Não queria ficar só, tampouco deixa-lo consciente. Que dor! Que rasgo no peito, me tirava o ar. Virei-me e deitei em seu peito. Que alívio me trazia abraça -lo e poder ouvir seu coração junto a sua respiração serena, adormeci.

Pela manhã, ele me disse que teve como um pesadelo, um sentimento ruim, agonia, desespero. Não respondi. Beijou-me e brincou de me deixar sem ar enquanto beijava meu pescoço e roçava sua barba em mim. Ele me tira de mim. E me traz ao mesmo tempo num êxtase de ser livre, mesmo que doente. Olhei pro teu lábio, porque tudo que diz ou beija é amor que sinto. Não disse "Eu te amo", apesar dele saber que sim, desde antes de estarmos juntos assim. Mas não disse porque seria vazio, não se trata de um amor romântico, mas do companheiro que admiro e me faz anoitecer, independente da noite que seja.

Julho





Deito, tentando me afastar um pouco dos pensamentos que outrora teria de encarar. Tomar a decisão mais difícil, que necessitava uma compreensão muito maior sobre meus limites e onde estou disposta a ir. Cobri a cabeça com o cobertor, e fui apagando. Ele subiu, entrou no meu quarto sorrindo, chamou meu nome uma vez. Não respondi. Chamou de novo e sentava do meu lado, queria que eu descesse pra almoçar. Eu ainda acordando, mais do que descer ou mesmo continuar dormindo, queria ele. Me abraçou, e eu o apertei. Sua língua me ajudava a acordar com um sorriso. Ele em cima de mim, já despertava meu corpo que o queria de maneira crescente. Ele sabia, e continuava a me provocar. Ele então esticou seus braços para tirar a blusa junto com a camiseta. Eu beijava então seu peito magro e mordia sua barriga. Enquanto abaixava sua calça. Descia mais, e ele sorria então. Ia lambendo-o e já com ele dentro da minha boca, repetia o movimento. Ele respirava enquanto tocava meu cabelo com a ponta dos dedos. Ele ficou em pé, e suas pernas entre mim, me faziam quere-lo ainda mais. Ele sussurrou que "não ia aguentar" e eu acelerava os movimentos, enquanto minha mão passava por seus pelos claros da perna. Ele com as mãos na parede suspirava ainda mais. Até que suas pernas tremeram e seu corpo precisou apoiar-se na parede para não cair. Eu continuei, sabendo o que lhe provocava. O gosto dele, da sua pele, do seu pau, do gozo me agradavam tanto quanto a sensação dele estar com a respiração acelerada, atropelada.



A noite ele foi ficando, e teu sono me acalmava tanto quanto deitar no seu peito. Eu queria ele ali, assim, tranquilo e sem pressa.

...

Outro dia ele voltou à tarde. E eu já não sentia mais as dores. Ele apertava minhas coxas e provocava uma leve cocega que me arrepiava. Eu queria ele dentro de mim, e ele queria entrar também. Beijou minhas costas descendo cada vez mais, enquanto suas mãos acompanhavam meu movimento de se contorcer. Ele vinha no meu pescoço porque sabia que assim eu entregava qualquer resistência. Então, que ele sem perder o ritmo, me disse que era pra avisá-lo caso as dores voltassem. Então, segurou minhas mãos enquanto encostava sua barriga nas minhas costas e entrava em mim, pouco a pouco, até estar completamente. Então, que me penetrava e minha mão no seu pescoço não queria deixá-lo sair. Ele repetia o movimento, acelerando conforme minha respiração. Ele sorria e respirava fundo, enquanto eu e ele iamos nos fundindo no corpo, na alma, na dança. Ele apertava meu corpo e me enlouquecia cada vez que parecia sair e logo estava por completo dentro de mim. Meu corpo não encontrava ali questionamento algum, apenas respondia ao seu encontro e se excitava cada vez mais. Pouco a pouco, passavamos da cama ao chão, e não conseguiamos nos desligar. Ele e eu já haviamos ido neste lugar, mas ele dizia no meu ouvido com a voz tremida "não consigo sair de você", eu pedi baixinho "não sai..." e ele me puxou de volta pra cama e me abraçava, ainda dentro de mim. Os quase dois meses sem hormônio e o jeito que ele me faz sentir o mundo inteiro daqueles minutos dentro de mim, trouxeram de volta o grito sem controle do gozo. Ele atrás de mim, sorriu e eu sei porque sorri também ainda conectada. Ele beijou meu pescoço, e minhas mãos passam por suas pernas que me entrelaçavam, não como quem aprisiona, mas é parte já.



...

Naquela noite, ele voltou. Nossos corpos não queriam estar longes. e de novo ele estava dentro de mim. A noite toda, ele se manteve assim, e eu o acompanhava sem conseguir falar pela respiração que nunca estabilizava. Ele então conversava comigo, entre uma foda e outra, e eu lhe contei do que me provocava. Ele não só entendia, dizia sobre si. Disse que já o amava antes e que agora não encontrava palavras, ele disse que eu era sua melhor amiga. Era poesia, sem que eu me tornasse distante como poeta. Era ele desta vez, que me incluia na rima e dizia com palavras, língua, barriga e mãos que estava ali e que pretendia voltar mais vezes. Ele me queria livre, mas sem me deixar. Dessa vez não precisou me pedir calma, porque eu estava de alguma forma deixando o desespero tão meu do quarto pra fora. Ali, sob a cama, estava uma certeza, talvez a única, durava mais que o durante, o momento efêmero, era mais que amor. Era algo ainda que não encontraria palavras, nem tempo pra descrever. Na poesia, seria o ritmo, a essência que une o conjunto da proza, que se mantém como segredo que só aparece, quando se lê em voz alta.

Nesse mês, ele então disse que estávamos namorando. Eu ri. Ri dando espaço ao sorriso e a felicidade que não cabia dentro do peito. Queria-o e tinha-o. Na mesma medida que ele me tinha e me queria, como Virgínia, trans, sua amiga e namorada.


terça-feira, 28 de junho de 2016

Os 35 anos de Castigos Secretos

Teria ainda doze anos para alcançar os rasos 35 anos da perspectiva de morte como travesti. A primeira vez que ouvi este dado, meus olhos arregalaram e mal sabia que com o tempo se tornaria tão claro os motivos dessa faixa tão reduzida de sobre-vida. Que na verdade 35 já era um desafio e cada dia seria necessário pensar como passar os 144 meses ou 4380 dias que estavam por vir e provocando cada vez mais dúvidas se chegaria até lá. A perspectiva de vida, de vida! ,estava em outro horizonte, na luta cotidiana pela destruição da sociedade capitalista assassina das minhas irmãs e irmãos trans, aonde poderíamos simplesmente ser com plenas condições.

O suicídio do prazer, do corpo e dos anseios, lento e paliativo dos hormônios, que ainda posso sentir correndo em minhas veias, aumentado pelos cigarros e as doses quentes, consciente, é todavia o que me aproxima da vida que me é tirada. Os pensamentos sobre suicídio que arranca os batimentos e a sensibilidade instantaneamente rondam sempre como um fantasma que não oferece conforto. E os dias se repetem com o anoitecer me prendendo num beco sem saída, horas passam, dias passam, bons e maus momentos se apresentam, e a dor física e psicológica nunca. Começo então a entender que vou ter de conviver com isso, com estes pensamentos e com a incerteza se 35 não será muito pra mim.

O corpo desconhecido, impedido de ser estudado e cuidado, vai se definhando na busca por sua liberação. Quanto mais insisto em ser, menos sou e mais doente me torno. Me diagnosticam como doente mental, mas somente minha mente se mantém sadia, lutando constantemente sem vacilar. Me mantenho consciente para enfrentar tudo e todos, dos olhares, as pauladas, do beijo enjoado as gargalhadas, da patologia a disforia, o medo de seguir vivendo assim do medo de morrer por decidir viver. Me sinto sozinha, adoecendo com um sorriso para não provocar pena ou atenção, me fortalecendo para dias piores, que virão.

Enquanto isso meu corpo que adoece com as doses hormônais que decido, desesperadamente, tomar com anseios imediatos, é ignorado por completo. Ninguém se importa com o corpo, a saúde, o bem estar e a vida das travestis. Nós submetemos aos anticoncepcionais destinado as mulheres cis, ja altamente perigosos e não recomendados, sem qualquer estudo ou segurança das reações e efeitos colaterais. É a medicina dos sintomas, capitalista voltada única e exclusivamente ao lucro da grande indústria farmacêutica descomprometida por completo com a saúde e a segurança de todos, que dirá das travestis, homens e mulheres trans. Da minha cabeça querem a todo custo diagnosticar e controlar, meu corpo quando burla o controle estatal, se indisciplina a cisnormatividade, quando se recusa a manter-se num rumo imposto mascarado de "natural", paga seu preço quieto. Sem coragem de buscar ajuda dos postos de saúde e das UPAS transfobicos, onde o nome social é acompanhado do nome de registro para garantir um direito pela metade, dos olhares e comentários assim como as perguntas sempre tão direcionadas a "população de risco", que nada se faz para prevenir ou superar tamanha desigualdade e vulnerabilidade que vivemos. Ah! Eu que trabalho na saúde que sei, pra além dos folhetos e discursos, é exaustivo filas e filas para não saberem lidar com seu corpo. Supõem a tudo que estamos com DST, pois somos junto aos homossexuais a "marca do câncer gay" - HIV, AIDs - ou são os hormônios, mas vale mais acusar isso, do que ter qualquer estudo ou atendimento próprio que apresente uma saída a trágica realidade imposta a nossa construção de identidade de gênero.

Resta a mim, sozinha, a tarefa de entender meu próprio corpo. Escrevo meus sintomas, leio sobre possíveis doenças, mas nada comprovado. Elaborou teorias, divido com algumas amigas, me formo em medicina pela internet. Ainda assim, a dor já era tamanha que não podia mais evitar ir ao médico, como não fiz quando os primeiros sinais da hormônização apontavam em desconforto com minha genitália. Com muita desconfiança e cautela consultava me sempre tentando apontar meus "grandiosos estudos" virtuais.

Não foi uma, mas duas, três e quatro vezes que tive de me despir frente aos médicos, uma situação constrangedora, depois de explicar repetidas vezes que sou trans e por isso suspeitava de inflamação na próstata (órgão que as mulheres cis não possuem). Os médicos realizam seus exames de rotina invadindo meu corpo, e mesmo que não lhes fosse a intenção, eram evasivos simplesmente pelas profundas dificuldades de ali estar, nua e desconcertada.  Os médicos examinavam, mas não levam em conta nada das nossas vivências, baseiam-se num corpo cis que não me cabe. Todos me perguntaram quantos parceiros eu tive, e se usava preservativos. Perguntas de rotina, talvez, mas os olhos não me enganam. Fui da Santa Casa a UPA, da UPA a UBS, mas nos distintos exames nada apontava e repetiam que "eu estava bem". Fui então numa manhã fria até o Centro de Referência as Travestis (CRT) e me dei de cara que estavam em greve. Sem saída, marquei retorno com minha psicologa, a única coisa que ainda me restava fazer: desabafar. Retornar era um sinal de desespero e amadurecimento porque havia abandonado o acompanhamento (obrigatório) logo após o laudo sair com medo que meus pensamentos levassem a qualquer impedimento de seguir o tratamento hormonal. No dia da consulta, ela foi em um velório. Meu coração se desfez, e sozinha, outra vez, me vi presa a um corpo que cada vez mais se desfazia na aparência e completamente dolorido por dentro. Uma palavra? Invalidez.

...

Ele, então.

Dormiu e não acordou com o despertador. Eu levantei, evitando repetir o erro de me desorganizar na espera de que algumas horas amais pudessem reverter minha sede. Ele não é água, por vezes, não é também leite, nem algo que possa molhar a garganta. É ele próprio, a única coisa boa no mar de tanta insatisfação. Mas tampouco, ele também me satisfaz, ainda que amenize. Por mais romântica que eu seja ou otimista com seus lábios tão próximos, não cabe nele um peso tão grande dos castigos secretos destinados a mim. "Meu desespero ninguém vê, sou diplomado em matéria de sofrer", traduziu o alarme.

Caminho rumo ao trabalho, compulsório e insatisfatório, trago e solto a fumaça no ritmo do rap que me acompanha, sem me tornar menos só. Não choro, não me permito mais. Mas por dentro, é como se corresse um rio, onde só a senhora Woolf pôde se afogar e eu assisto, sem seu alívio. Mais um dia inútil, por certo, de um trabalho que exige bem-estar para manter todas as coisas como são. O problema é quanto mais se mantém, mais desesperador fica. A miséria que vejo nos meus pacientes é reflexo direto da sociedade que me empurra também a miséria. Me reconheço nas fugas, que não me permito, mas invejo. Muito longe de covardia, estes vivem a dor que sentem sem menos de transparecer. Sem refúgios, sem escolhas também.

A noite só penso em dormir, programo me desligar assim que acordo. Me pergunto se estou entrando em depressão ou se são apenas dias ruins que estão se estendendo pelas semanas, completam um mês.

Ainda sim, não resisto e sorrio quando ele está por perto, porque de repente, tão fora do costume e do meu contexto, quase saio de mim e desse reflexo do espelho, me sentindo eu mesma, carregando um corpo quase morto, mas com um sorriso bobo, apaixonado, de imaginar que um dia isso poderia ser diferente. E que ele, dessa vez, existe.

Se mistura tudo nesses dias, perde-se a coerência. Estou permanentemente doente, e já não me parece que vou melhorar. Penso então que daqui pra frente será isso, assim, permanentemente incompleta como consequência do que me fiz. Do que por conta própria, onde os castigos sociais são secretos e mascarados pelas instituições democráticas, causei aparentemente sozinha em mim. Minha sexualidade talvez tenha sido castrada por definitivo, e é um luto profundo da alma. Primeiro foi o orgasmo, depois minha relação com o pênis que cada vez menos me trazia conforto, ora pela imposição social, ora pela dificuldades de ereção. E agora o mais assustador, eram as dores e a ausência de desejo anal. É uma questão de tempo então, pra que este romance se torne o que pode ser, apenas amizade. E eu, sozinha por completo, encarar de frente minhas penas. Retardo ao máximo, mas não poderei evitar. Me atraso ao trabalho, perco a hora, penso e me dedico por vezes em excesso ou exagero, com a sensação do que se vaza as mãos. Meu corpo de só 23 anos já cansado e sem hormônios começa a se desfazer. Grita atoa porque a voz roca já não sai. Ou pior meu corpo volta a fazer-se no sentido contrário. Não sei se os hormônios que voltarão a produzir, negando-me, irão amenizar ou aprofundar as dores e minha disforia. Cada dia que passa fica mais difícil me sentir bem comigo mesma. Combato a beleza cisnormativa e a perseguição ideológica de me disfarçar de cis, mas isso não muda que meu corpo não me representa.

Ele não liga, diz ao menos. E isso importa muito, mas não ameniza. Por vezes desconfio, se me deseja mesmo ou aprendeu a gostar. De alguma forma seu respeito, me afasta, porque parece menor a necessidade do meu corpo se adequar. Mas não é por ele, ou só por ele, agora. De alguma forma sua indiferença disto tranquiliza, porque não é indiferente com o que sinto. Mas por incompreensão, ao mesmo tempo que me deixa mais segura não me vê como objeto, mas por inteira, também me torna mais responsável pelas decisões que só eu posso tomar. Pela primeira vez, sou mais que sexo, que um buraco, escondido e envergonhado. É, de todos os muitos homens que já estive com - nunca junto! - o primeiro que talvez me veja com estes olhos, humaniza.

Parece estranho, assim quem olha de fora, que este contraponto da vida não satisfaça. Mas me amedronta, atropela e por vezes intimida a intimidade que lhe pertence. As mãos dadas, o beijo de cumprimento, o beijo na testa ou no pescoço espontâneo, a mão que aperta minha coxa e os olhos que me atravessam, transpassa rápido demais. Sua língua dança na minha boca, assim como suas mãos e dentes me fazem dançar nua na cama. Ele escolhe o ritmo e eu sempre me deixo levar, mesmo sem saber dançar. Ele ri baixinho enquanto me pergunta se estou bem no meu ouvido, enquanto minha respiração não volta ao normal e meu coração já não separa o corpo da mente, conecta de forma que neste momento eu já sou toda dele, ainda que nem eu, e nem ele, pertença a ninguém. Meu corpo encaixa de forma que não se mede sozinho por sua aparência, mas pelo ritmo que se entrosa e já parece ser uma mistura própria.

Por vezes ele me adverte. "Ficar contigo não é só beijo, quero ouvir você, conversar, passar tempo junto". Como se pudesse segurar meu desespero e a adaptação a miséria das relações, acostumada a ser sempre objeto. Então que tira a migalha da minha mão e joga aos pombos que lhes pertence e me quer por inteira, mesmo quando tenho me sentindo menos de um terço ou apenas um quinto de ser, devido a todo o resto do mundo, que ele é exceção. Me coloca em risco ao me dar outra meta mínima de relação, humaniza de forma a afastar-se de tudo que já vivi com homens. Sei que ele vai embora, mais cedo ou mais tarde volta, até quando eu não sei. Mas como nada é feito pra ser eterno, aproveito e agradeço a noite que passou. Sei que sem ele, volto de novo pro lugar de onde vim e quiseram por todo tempo me convencer que me convém.

Nas ruas, de dia, ele legalizou o toque, o beijo e o carinho. Um detalhe pequeno, discreto e quase invisível as pessoas cis, mas raro as pessoas como eu que raramente são vistas como pessoas. Ele foi o primeiro em 23 anos, que ao me ver, sorri e me beija, sem olhar pros cantos, medir as consequências e evitar ser reconhecido. Me deixa confortável, mas... é sempre uma insegurança de pra aonde isso me leva. Não quero me tornar dependente, por mim e por ele.  Que ele não se torne paterno e nem eu sua, permitindo que cresçamos juntos sem nos dissolver. Mas cada dia mais, quero ele mais...e mais. Um anseio ilimitado de quero ao meu lado. Também porque já não encontro conforto em mais lugar algum.

Felicidade é sempre contraditória, porque a realidade joga a favor por algumas horas, mas também revela toda uma trajetória de solidão. E sei que preciso me manter consciente que mesmo com ele, sou sozinha. Trans, mulher, guerreira, por conta própria, mas também cheia de companhia na luta pela vitória dos nossos. A guerra não para e meu corpo segue como campo de batalha, por isso, os sorrisos me amolecem mas não me deixam esquecer, não permito.

...

Volto a escrever, mesmo desta vez sem ter poesia, ritmo ou palavras bonitas escolhidas para fazer-me melhor. Só escrevo porque assim não me escondo tampouco me rendo ao que vai acontecer. Simplesmente, na escrita se diz mais do que se pode e sem medo porque ninguém pode ouvir. É um grito abafado no travesseiro ou um sussurro pra alguém que já dormiu, alivia um pouco. Não mais do que pode aliviar um trago na madrugada sem álcool pra nos fazer dormir.

Mas sigo, todo dia sozinha encarando que escolhas que só eu posso tomar, tomarei. Já pago o preço imposto por querer ser eu mesma, são os castigos secretos que nos levam embora pouco a pouco. E a dívida é por conta. E nos deixam sem palavras para revidar. Me sinto há algum tempo sem saida. Ele alivia, me diz sem som algum que valeria a pena chegar aos 35 e passar. Me disse, no breu, deitado ao meu lado, que sou jovem e tenho muito ainda pra viver. "Mas o mundo é uma bosta", ele sabe, eu sei, talvez não seja tão bom assim viver. Mas ele é exceção, e sabe disso, num mundo podre que o romantismo não salva, machuca e por vezes fragiliza. E que ter uma visão alegre não pode colorir o que foi manchado de preto e branco.

Trago outro cigarro com a consciência de que me mato ainda mais. Noutra noite, ele dormia e eu acendia um segundo cigarro, não era apenas insônia, mas uma voz que me perseguia. Ele atrás de mim me abraçava e me esquentava num frio cortante. Uma das suas mãos seguravam a minha, e eu me esforçava para minha respiração e a leve tremedeira do choro não o acordassem. Pensei "Estou com medo de morrer", depois sentindo seu toque, que por vezes se mexia naturalmente, me ardia a alma. Eu que não acredito em religiões ou espiritualidade parecia crer que ele aparecia quando eu ja não tinha mais tempo. Não queria magoa-lo e pela primeira vez me sentia responsável por alguém assim, porque pela primeira vez tinha certeza que ele tinha sentimentos por mim. Não poderia acorda-lo para mais uma notícia ruim. Minha cabeça girava, eram os dois cigarros seguidos, mas o sono estava ainda longe. Não saia da minha cabeça que seguir vivendo assim, era melhor afasta-lo o quanto antes. Que egoísmo te-lo amenizando todo o mundo enquanto me trazia uma brisa de felicidade. Não queria ficar só, tampouco deixa-lo consciente. Que dor! Que rasgo no peito, me tirava o ar. Virei-me e deitei em seu peito. Que alívio me trazia abraça -lo e poder ouvir seu coração junto a sua respiração serena, adormeci.

Pela manhã, ele me disse que teve como um pesadelo, um senrimento ruim, agonia, desespero. Não respondi. Beijou-me e brincou de me deixar sem ar enquanro beijava meu pescoço e roçava sua barba em mim. Ele me tira de mim. E me traz ao mesmo tempo num êxtase de ser livre, mesmo que doente. Olhei pro teu lábio, porque tudo que diz ou beija é amor que sinto. Não disse "Eu te amo", seria vazio, não se trata de um amor romântico, mas do companheiro que admiro e me faz anoitecer.

domingo, 26 de junho de 2016

Ju

Meu desespero
Intrínseco
Teu beijo
Transforma em riso
Morde que te digo
Entre suspiros
Baixinho
No teu ouvido
Teu sorriso é lindo
Safado e irresistível

Toda manhã penso e reclamo
O tempo é maldoso
Correm as horas
E as noites mais
Queria poder ficar
Sem contar o tempo
Que deixe passar

Como é difícil começar um dia
Deixando na cama
Tua imagem dormindo
Beijo pra sair do quarto
Ao menos, levo comigo
Teu cheiro e teu toque
Passo o dia
Com sorrindo

Espero o próximo encontro
Pra matar o tempo
Que de novo
Não deixou
Matar a vontade
Do teu corpo


Que sufoco!
Aguardar mais horas que não passam
Pra te ver de novo
Matar aos poucos
Esse desejo louco

sexta-feira, 3 de junho de 2016

Detalhes

É coisa de detalhe
Mas me deixa meio sem jeito
Sutil feito por um olhar já conhecido
Um beijo surpresa
Sorriso bobo desapercebido

Quando vejo
Já era o tempo
Do mito, do medo, do desespero
Cala minha insegurança com outro beijo

Sorriso dura ao menos um dia inteiro
Abrigo, caminho...
Você é tudo ao mesmo tempo
Me prende e me solta sem desapego

De tão simples, corria o risco de passar batido
Senão fosse
Os olhos
O toque
Os lábios (!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!)
E o sorriso

Ah!
São detalhes
Uma frase ou um suspiro
Não sei
De repente
Tudo parece fazer sentido

quarta-feira, 25 de maio de 2016

Diga algo

Não quero ser aquela
Que tem me assombrado
Sempre carregando partes
De um ser profundamente incomodado
Não quero ter vergonha
Nem sentir pedindo desculpa
Se não me fiz clara
Não quero ser fraca

Não quero não incomodar
Viver com a ilusão
Que a vida é só deixar passar
Que um dia cura, cicatriza, se desfaz
Não sei respirar fundo
Controlar os impulsos
Fazer do segundo um momento amais

Diz alguma coisa
Mesmo sem saber
Meu corpo chora e eu desisto de conter

Quem dera
Houvesse
Chance
Uma gota que fosse
De vida
Para
Poder
Te encontrar
Num beijo

Quem
Dera
Houvesse
Esperança
Uma gota que fosse
De confiança
Para
Poder
Existir
Além da dor

segunda-feira, 23 de maio de 2016

Camará

Nosso amor
Sem dúvidas
Não é novo
Nem pouco
Vive se transformando
Antes era espontâneo
Agora vive ansioso

Estamos sempre pelo caminho
Sem precisar determinar um destino
Nossos corpos tão passageiros
Se cruzam bem devagarinho
O tempo não corre
Também não tem porque
Estamos bem

Surpresa
Te vejo cada vez mais belo
Penso, logo te quero
Não precisa me beijar o tempo todo
Mas espero
Não precisa pegar na minha mão
Mas fique
Por vontade
Porque quando deito no teu peito
Me abraça pelas costas
Ou beija minha boca
Quero
Mais que tudo
Carregar comigo
Um pedacinho
Do teu sorriso

quarta-feira, 18 de maio de 2016

Destempo

Riso
Congelado
Não parece mais disfarçar
O tempo
Passado

Imagem
Fotografia cerebral
Não parece, mas fortalece
O tempo
Pra não deixar-me indiferente

Independente
Desses dias frios
A chuva trouxe meu peito
Não mais tão cheio
Calmaria...
Quem dera pudesse me acostumar

Do silêncio
Faço um novo pensamento
Se vai ou fica
Não muda mais...
Foi bom te ver
Tanto quanto
Não mais

domingo, 15 de maio de 2016

Des

desses, espero
Amanhã
Me des...
             Esperar
Sem desespero
Dessa vez
Se des-espero
Não me canso

sexta-feira, 13 de maio de 2016

Descoberta

Não choro mais
Já ouvi outra vez
A intenção não é magoar
Mas não posso ser amada

Triste descoberta
Transfobia revela
Ainda é mais forte
Não mais que eu
Que me fiz
Com e sem armadura
Quem ninguém quer estar no lugar
Mas respeita, como sobrevivente

Sorrisos
Ah, esses meninos
Tão bonitos e tão sozinhos
Impossíveis de penetrar
Mais fácil é aceitar o que podem dar
Ser for miséria demais
Vou me embora

Uma hora
A gente se engana de novo
Que tudo será diferente
Quem sabe
Encontre uma nova canção
Tudo para não sentir tão inútil
Esse meu coração
Que insisti sempre em entregasse só

Anoitecer



Cheio de ovos
Caminho, ora insegura
Ora você segura minha respiração
Que alívio!
Es um caminho
Que não tenho pressa
Quero passar devagarinho
Mas lembro
Que es passarinho
Sempre sozinho,
Voa, construindo caminhos
Fazendo assim teu destino
Tão bonito
Quanto teu sorriso
Que me faz sorrir também
Mas não esqueço
Que sou parte
Mas não completo
Sou tua apenas por reflexo
Te quero, mas não insisto
No que não se pode ter
Ser livre e perdido
É também o que mais gosto em você
Não posso prever
Amanhã quem sabe, quem vai dizer
Se ficou está noite, já é o bastante
Pra amanhecer

quarta-feira, 11 de maio de 2016

Um traço

O dia todo esteve presente: sorriso, fumaça e este par de olhos que penetram assim como o conjunto do teu corpo o faz, em lugares fechados. Queria beijá-lo desde a hora que o encontrei. Dizem que é no beijo que se simboliza o amor, penso que tenho amado-o demais nesses dias, então. Essa vontade de estar junto sempre vem misturada com a vontade de ficarmos juntos. Mas como eu lhe disse à noite, o conheço, e o amo assim. Livre, passarinho, não se fez abrigo, aprendeu a ser caminho. Quero passar, então devagarinho. E por quanto puder trafegar, irei. Porque é pela maré imprevisível que te quis tão perto.

O anseio de estar junto, do beijo, produzia agonia com as idas e vindas. No fim, deitou-se atrás de mim. Que delicia senti-lo atrás de mim, com teu braço me entrelaçando e teu nariz na minha nuca. Respirava e soprava em mim um pouco do teu charme. Mas subitamente senti o desespero de que poderia ser minha aceitação da miséria, o que só se respondia pela necessidade de me impor para preservar o orgulho que custei a adquirir com os outros cortes que fiz no coração. Levantei-me, fumei um careta, mas o sono não brotava. Fumei então outro. Deitava novamente e esperava que o corpo pudesse provocar alguma mensagem. Ele dormia, não via nada e nem ouvia o que eu não dizia sobre me sentir. É que apesar dele me tratar como sua igual, não seriamos nunca iguais e por isso, sempre me sentia na gangorra presa a areia. Ele, alto como era, podia ver de longe o alvo que lhe pertencia. Eu estava feliz, que ele ainda estivesse brincando no parque comigo. Não conseguia permanecer deitada, e seu toque, era de carinho, mas me trazia tristeza. Então, que ele despertou e pois seu corpo à contar-me quanto gostava de mim. Brincava de me sufocar de sensações. E a dúvida punha a se desmanchar. Ele também queria estar ali.

...

Teus olhos, se fechados, me fazem um convite. Quero estar na tua mente, agora. Quando me olha, sem piscar, sinto uma deliciosa sensação como se me visse metade eu, metade quem eu quero ser. Tuas mãos grandes já me correm pelo corpo, me fazem respirar no ritmo que teu toque quer me conduzir nessa dança. Nossos corpos nus, dizem primeiro. Teu peito quente colado nas minhas costas me abraça, tão forte quanto nós gostamos de abraços, pelados. Teus lábios vão além.  Me encostam com carinho, arranha os dentes, instiga meu corpo a transcender. Só contigo sinto que posso me deixar entregue sem deixar de ser dona de mim. Como você encaixa, me bagunça, me deixa incapaz de pensar! Então, diz. Depois que o corpo já provou, me diz o quanto não me quer magoada, que posso cobrá-lo, que não está comigo por acomodação. Alivia. Como quem prevê que as palavras trazem o complemento à melodia que nossos corpos sabem combinar.

Que bom é encontrar alguém assim pra dividir.

terça-feira, 10 de maio de 2016

Insônia

Não adianta aceitar a miséria
E iludirse por mais uma noite
O sono se cessa
E o coração atingido
Volta a se sentir sozinho

Não adianta aceitar a migalha
Não podemos esquecer
Que no fundo estamos só
Sem muito saber o que fazer

Não adianta
Vir a noite
Ou fazer sol no outro dia
O tempo não alivia
Só comprova a teoria
De que não há amor
O bastante nessa vida
Que possa me preencher

Não
Adianta
Mais
Insistir
Tem hora
Que o melhor a fazer
É partir

Vai, meu bem... Procurar alguém pra amar que não sou eu

Respira, tão perto
Mas nem imagino onde está
Deitou se e saiu
Não tinha interesse em ficar

Choro contido
Numa noite sem sono
Já são três e pouco
E não vou me refazer
Que chegue logo as cinco
Que eu vá trabalhar e esqueça disso

Se já não me quer
Me deixa sentir o frio
Que me convém
Sei que é ruim
Mas ao menos decido
Que desta miséria
Eu já não compartilho
Antes só comigo
Do que só te fazendo de abrigo

Quero
Ser
Livre
Nem que pra isso
Tenha que estar

domingo, 8 de maio de 2016

"Mais amor sem dúvida, por vontade...sem favor".


Despertava de um sonho que trazia em si as angustias que conscientemente não lhe davam palavras para procurar ajuda. Era parte, pelos seus hormônios que lhe pregavam peças, com desconfianças e inseguranças que encontravam provas em sorrisos, olhares ou vestígios secretos que sua mente produzia. Mas não era só os hormônios, eram seus peitos que cresciam lentamente provocando desconfiança se seus companheiros os reconheciam e por eles poderiam se interessar. Era à seco: a dúvida se à ela o amor só poderia ser apresentado como um favor, nunca um desejo ou um sentimento sincero. A noite anterior, havia reforçado estas ideias que não lhe fugiam a cabeça. Compartilhava carinho com um amigo-companheiro, dormiam juntos, amavam-se sem paixão de namorados, mas com o desejo de se verem bem. O toque provocava mais nela, do que nele, o desejo, o anseio de alcançar um gozo que já não produzia, graças as injeções quinzenais que escolhera não abrir mão. O gozo não viria, mas talvez se realizaria mais, se pudesse provocar nele esse "atropelamento" que deixava a cabeça muito lerda para acompanhar os suspiros e as contrações do corpo. Ele a tocava, depois parava. Beijá-a, depois parava. E nela, isso provocava a dúvida, senão a beijava para não ser mal educado ou desrespeitoso. Se todo o carinho não era preocupação de não deixá-la triste ou senão cedia um pouco, também por não ter ainda voltado aquela montanha-russa que com ela não poderia ter.

Levantou-se, organizou a cama e desceu as escadas tentando encontrar sentido nas angustias que escondia dele, para não levar a relação a outra dimensão ou duvidar dele à maneira de provocar chateamentos ou mais pena, caso fosse verdade. Sabia que apesar de não haver regras estabelecidas, ele era a melhor relação que ela já teve com um homem, ainda que não fosse uma relação amorosa. Ainda assim, havia amor. E disso ela jamais duvidava. Mas tinha sido pega na sua própria armadilha, de nunca ter se proposto a vê-lo com estes olhos, e pouco a pouco, percebia que ele era alguém fácil para se entregar. E que em muitos momentos gostaria que ele a procurasse pra isso. Permitia-se transformá-lo, ele em poesia, ela em poeta. Mas era mais expectativas que já conhecia, de um sentimento e uma busca que desconhecia. Terminou o café, e na primeira xícara reconheceu que até mesmo pra ela, tinha sido muito pó e pouco açúcar. Mas condizia com suas aflições. É sempre um pouco mais amargo, do que doce.

Voltou ao quarto, já que não havia um lugar sequer que quisesse ir hoje. Acendeu um cigarro vermelho, e pensou em escrever-lhe uma carta. Desistiu antes mesmo de lembrar-se onde estavam os papeis e uma caneta que funcionasse. Ele não poderia defender-se, então ou assumiria seu desamor ou encontraria um jeito de afastar-se. Ela, acostumada com a miséria das relações, buscava se manter independente e nos dias mais tristes, não lhe recorria, porque era pior aliviar-se de pena do que segurar seu coração acelerado e sua mente confusa contra as horas que não lhe traziam sono algum. Torturava-se em guardar neste aspecto um vidro que impedisse adentrar todas essas frustrações, que já estavam abalando o resto todo. Sabia, por experiência, que não se deve entregar-se sem garantir os pés presos ao chão e o coração com algumas reservas. Do contrário, a dependência custaria mais alguns meses até separar-se das ilusões que ela mesma criava. E mesmo sem querer reproduzir seus medos das relações passadas, eles a acompanhavam e não podiam deixá-la em paz.

Lembrava-se que dos homens conhecia apenas duas reações, dos que a desejavam tanto sexualmente que não tinham mais espaço para coragem de desenvolver qualquer relação afetiva, e dos que, assim como este que lhe segurava as mãos, beijava o pescoço e lhe fazia sentir-se humana, faltava-lhe o desejo. Sempre um sentimento incompleto, ou o corpo ou a alma, e ambos nunca se encontraram. Como era difícil sentir-se bem sendo quem lutou para ser. Pensava se mandá-lo embora, ajudaria em algo e não precisava de um minuto sequer para ver que não. Mas sentia-se num beco sem saída. Talvez, esquecer-se disso tudo e aguardar o momento em que ele, pela vida, a deixasse, seria agir de maneira mais segura. Preparar-se para isso, era o que talvez fosse o mais estratégico a ser feito. Talvez depois disso, novos amores impusessem à ela outras maneiras de ver. Mas à essa hipótese, ela não mais queria pensar. Sozinha na casa, poderia encontrar-se e buscar o prazer que a dois não encontrava. Mas não podia, e sabia disso, já não lhe restava libido próprio ou o medo de se machucar nesta busca, já tiravam-lhe este anseio. Até quando? A contradição que lhe atormentava, na vida, era que responder-se negando-se ou anulando-se já contradizia sua atividade militante. Não conseguia sorrir, por aquela tarde. Os castigos secretos que denunciava em outros artigos que escrevia, marcavam nela uma dor silenciosa, vergonhosa e que preferia esconder. Guardar este homem dos seus pensamentos, era novamente separar sua vida artificialmente, mas à ela, falava coragem para mais uma batalha.

Desceu as escadas e deitou-se no chão. Que a prosa lhe trouxesse paz, pediu. Não trouxe. Mas ao mesmo registrou seu grito aqui.

quinta-feira, 5 de maio de 2016

Partido

Antes que novas palavras
Levem o peso do meu coração descompassado
Sinto imensamente minha solidão
Como nunca tão forte

Decidi que vou até o fim
O coração grita e se rebela
Tortura fazer se tão só
Quando o frio e o travesseiro
Esperam uma companhia que não vem
Inventei à mim mesma
Por consolo ou auto piedade
Mesmo sem dizer
Mesmo sem querer

Confusa
Coração-Bomba explode
Como nunca!
Confusa
Coração-Bomba explode
Não há fuga

Não quero ver ninguém
Não quero ser alguém
Não quero pensar além
Só conseguir respirar
Pelo menos, uma vez



Desesperada

Antes de cruzar o farol
Já te quis e decide por deixa-lo
Quero matar no peito
Mas morro sufocado
Queria que tivesse ficado
Mas meu desejo é censurado
A realidade está tão distante
Desse crime planejado
Quase um atentado
À minha estabilidade
Tão frágil

quarta-feira, 4 de maio de 2016

Por não

Não exijo o amor
Também pouco sei pedir
Quero que fique
Que me ajude a descobrir
As palavras
Quis tanto não incomodar
Que me fiz invisível
Passei batido
Não deu tempo pra sentir falta
Ou me fazer sentido

Vergonha

Tenho uma bomba contrarevolucionaria
Dentro do meu peito
Cuido para que a cada toque
Escape menos verdade do que se deve

Se ao menos, pudesse me afastar
Com todo cuidado para não ser vista
Desaparecer sem ninguém notar
Graças ao não querer incomodar
A humilhação não tomaria forma
No meu rosto como agora escorrem lágrimas

Tenho uma metralhadora reacionária
Que atira em cada um dos meus amores
O meu fracasso como uma nova decepção
Se mal posso manter minha cabeça levantada
É porque conheço a verdade do que estou dizendo
Não posso mais seguir com um sorriso rosto e o coração dilacerado

Dos amores
Só pude utiliza-los ao meu egoísmo
De artificialmente me sentir mais forte
Mas se ficaram por pena ou qualquer outro motivo causado pela minha fraqueza
Fomos tão desonestos quanto nos propusemos ser

Tenho uma bomba contrarevolucionaria
No meu peito que quer explodir
Repetir todas as desculpas pra correr de tudo
Não olhar pra tras, pois causa vergonha tamanha quanto a de ficar
Seria melhor que ao explodir também transformasse em mim
Mas só pode revelar
A covardia
Que sou

segunda-feira, 2 de maio de 2016

Cura

Nós dias frios
Tão difíceis de andar com as próprias pernas
Melhor não sair da cama
Invés de apoiar-se em tipos de amor
Mascaram, a dor que sinto

Minhas pernas se mantém
Não faria diferença correr
Não tem lugar que me faça esquecer
Meus braços seguem presos a mim
Indiferente porque não há abraço
Que cure o vazio da certeza que

O caminho e a consciência não vão retroceder
Exigem cada dia mais do pouco que não basto
Choro ou sem choro, me pergunto até quando
Arrasto em mim o sonho e meu fracasso
Até quando consigo escapar e me desfaço
Queria por um fim,
De uma vez

sábado, 30 de abril de 2016

Vamos falar do tesão sobre as travestis?

O Brasil conhecido como país que bate recordes de assassinatos de pessoas trans pelo mundo, chegou a ter dois homicídios por transfobia - ódio e aversão a pessoas não-cisgenêras - por dia durante o mês de janeiro desse ano. É também, não contraditoriamente, o país onde mais se busca pornografia com pessoas trans. Se pra alguns isto deveria ser um contradição, me explico: a maioria dos casos de homocidio contra travestis e mulheres trans ocorrem após sexo ou o interesse inconformado da atração física. Isto é, a maioria das travestis obrigadas a entregar seus corpos e realizar sexo para sobreviver, sobrevivem pouco a transfobia internalizada de seus "clientes" e flertes. Seja no "momento da descoberta" ou como ação de repulsa após o gozo, tão marginalizado e repugnante aos olhos da moral burguesa. O que evidencia que o desejo "do sexo proibido" e a vergonha pública de se relacionar com pessoas trans - como foi escancarado por diversos jogadores de futebol e outros casos que ganharam atenção da midia por "envolvimento de homens famosos" com travestis e transexuais - se combinam sob a ordem da repressão sexual e a humilhação das identidades trans, a forma obscura dos "castigos secretos" - para usar o termo de Karl Marx em "Sobre o suicídio" - das penúrias e atrocidades que as instituições "democráticas", a igreja e a família produzem contra a vida humana, e dos LGBT em particular.

O Brasil ao sediar a Copa do Mundo em 2014 expôs internacionalmente como é visto: o país do "sexo exótico", dos corpos objetos e do grande tráfico internacional de mulheres e crianças para fins sexual. A realidade é que a prostituição é, na maioria dos casos, um destino involuntário das mulheres trans e travestis. Sendo de algumas como forma de sobrevivência, outras como " modo de vida " imposto, isto é, ainda que não realizem sexo por dinheiro, somos constantemente tratadas e reconhecidas desta forma, involuntariamente.

Se por um lado, o alto índice de procura nos canais virtuais de pornografia comprova que a profunda miséria das relações afetivas, a qual cada vez mais surgem denuncias como esta e esta , não são resultados de uma " natural faltando interesse " ou "desejo minoritário". Comprova-se a tese que a profunda miséria sexual da sociedade burguesa, a qual reprime os extintos naturais da busca pelo prazer, reduzindo e encaixando o sexo à moralista concepção de família burguesa. 
Por outro lado, evidenciam que não é verdade que aos homens cis e heterossexuais está garantido o prazer sexual, uma vez que parte destes sentem-se atraidos por pessoas trans e por isso são reprimidos em seus desejos, recorrendo ao comércio "ilegal" da prostituição e do sexo pago. Aos demais homens há garantido um sexo limitado para a vida pública, enquanto seguem com o corpo limitado ao prazer à genitália para conservar o frágil conceito de heterossexualidade absoluta. 

Obviamente os companheiros de pessoas trans sofrem apenas um respingo que atinge em cheio o peito e a mente das pessoas trans. Enquanto não se falam sobre o pau das travestis, o prazer anal ou mesmo a busca por um sexo questionador e subversivo contra a ordem vigente. As travestis assim como as mulheres cis tem o direito ao prazer negado, onde as mulheres lésbicas não tem sequer reconhecido sua prática sexual, uma vez que a normatização do sexo heteronormativo não concebe a ideia de sexo sem pênis ou sem penetração. Somos os corpo assim como as sexualidade destinadas meramente ao prazer e ao tesão do homem.

Por trás dos suicídios e do transfeminicidio esconde-se os mais variados "castigos secretos" orquestrados pela sociedade burguesa, sem piedade alguma. Os mesquinhos e indiferentes encontram responsabilidades individuais para justificar tais atrocidades, ignorando propositalmente o descaso da ciência burguesa ausente na saúde e na atenção à população transgênera, as burocráticas leis deste Estado - instrumento de opressão da burguesia sob o conjunto das demais classes sociais - e regras para garantir direitos básicos elementares como ao reconhecimento da identidade, do nome e do gênero das travestis, homens e mulheres trans. A educação padronizada que se recusa cada vez mais incluir os debates sobre homo-lesbo-transfobia, escondendo StoneWall e todas as lutas e rebeliões LGBT existentes da história. A ideologia religiosa e conservadora que se dissemina nos programas televisivos, nas rádios e nas demais meios de comunicação que se transformam em dialeto nas filas de ônibus, nos olhares inquisitoriais e nas risadas cotidianas que perseguem as identidades que se recusam a obedecer as normas binárias e domesticadas ao capitalismo. A perseguição por grupos de extermínio, a ação da polícia cotidiana nos pontos de prostituição, a culpa induzida pela igreja, da família e da moral conservadora são só alguns dos elementos que denunciamos evidenciando a responsabilidade do Estado e da burguesia para o sangue e as mortes de LGBT.  

A miséria sexual produto da repressão sexual ideológica, institucional e dos castigos secretos se mantém sob a ordem burguesa estabelecida sobre vida pública. O lado contrário da mesma moeda guarda a hipocrisia dos direitos da vida privada, onde teoricamente "tudo se pode", só pode se concretizar para um punhado de parasitas capitalistas, onde novamente a economia, sua condição de classe, é determinante para quem adquiri o direito garantido a todos, pelas letras mortas das constituições em todo o mundo. Esse direito de poucos só podem existir sob o custo da exploração e opressão de centenas de milhares de LGBT, mulheres e pessoas que se relacionam com pessoas trans.

Por isso é urgente falar contra as tentativas permanentes de manter as pessoas trans e sua vida como um gueto obscuro. Quando falamos sobre o tesão sobre as travestis, falamos do fetiche criado diretamente por estas estruturas, resultando num sexo pragmático, com apenas um único sujeito "merecedor de orgasmos" a partir de uma limitada liberdade dos corpos cisgeneros. Esse fetiche, não atoa como explicamos, não é produto de uma ignorância ou ideologia avulsa, mas baseada nas condições objetivas da estimativa de 90% das identidades trans estarem afogadas no submundo da prostituição, da marginalização e do altíssimos índices de suicídio. Enquanto houver capitalismo, a submissão e a dor de milhares de nós seguirá transformando-se em furia, até que o ódio encontre vazão numa estratégia aliada a classe trabalhadora, a única classe verdadeiramente revolucionária capaz de paralisar a produção e colocar sua força em enfrentamento à burguesia e sua moral, tão alheia aos interesses da emancipação humana, sexual e identitária.

sexta-feira, 29 de abril de 2016

Silêncio

Apesar de muda
Os olhares mudaram
E quando fechados
O toque acalma a alma
Já encontro beleza no riso
E a certeza de querer um beijo
Fora de hora
Fora da cama
Ainda que seja um risco

Não chegamos aqui pela paixão
Disse tantas vezes, que quase acreditei que fosse impossível
Conservadora eu, que ridículo
Te gosto enquanto amigo
Porque não ser sincera contigo?

Medo de mudar
De você também não dizer
Como hoje não te digo
Te engano então
Pra manter sigilo

Pareço louca
Porque sou
Mas não queria repetir a cena
Nem de ser rejeitada
Nem de dizer que estou pensando essa parada
Mas resisti até hoje à este charme
Meu orgulho achava ultraje
Dizer que te quero nos dias comuns
Sem desculpa ou pretexto
Deitar no teu peito
E sentir-me dona de mim
Ao lado de meu companheiro

Tocado pela transfobia divina

Outono chegou atrasado, mas derrubou a temperatura com toda força. No ponto de ônibus era difícil esperar o ônibus com tantos ventos amargamente frios que me cortavam o rosto. O coração estava estável, há pouco rachado, agora já não querendo muita conversa ou aventura. Meu cabelo solto, armado (para o combate), vermelho fogo chamava atenção. Me cobria as orelhas e também parte do rosto e isso me fazia feliz, já com o pouco que me aquecia. Meus olhos, apesar de recém acordados depois de uma longa viagem, estavam atentos a cada ônibus que chegavam. Todos passavam, menos o que me levaria ao meu destino. Inferno!
Foi quando reparei, bem ao meu lado encostava um menino jovem, com seus 23 talvez 24 anos. Meus olhos então deixaram os ônibus que vinham de minuto a minuto e se divertiram ali, naquele rosto, no charme do frio que trazia certo mistério e curiosidade sobre este rapaz. Algumas pessoas passavam me encarando, desta vez, parecia que meu cabelo chamava mais atenção do que eu ser trans, por um ou outro motivo, me orgulhava e os olhares, já tão comuns e cotidianos, não me provocavam nenhum sentimento. Era nada além do costume. Ele então expressava alguma reação, nos distintos olhares que me cercavam. De repente ele também me olhava e isso me deixava inconfortavelmente alegre. Também não lhe tirava os olhos.

Ele então respirou fundo e se dirigiu a mim. "posso te falar uma coisa?". Meu coração acelerava, enquanto minha mente pensava " pode me falar o que quiser", ri pra mim mesma. Em fração de segundos, reparava no seu lábio e de quanto ele estava longe, no seu cabelo e o preto dos fios e seu par de olhos que me olhavam de forma tranquila. Respondi, claro.

"Eu não podia deixar de dizer que Jesus tocou meu coração pra te trazer a palavra dele, que te ama INDEPENDENTE DO QUE VOCÊ FAÇA OU SEJA".

Silêncio em todo meu corpo. Que chatice! Nao é a primeira vez que um " bom cristão " vem me pregar que mesmo sendo travesti (e sempre é este tom de "apesar do seu pecado/doença/escolha/quem você é, etc") Jesus te ama. Respondi educadamente "Ok". Mas ele insistiu em continuar, desta vez - como o foi mais mascarado da primeira - tocado pela transfobia, me perguntou "Qual seu nome?". Nesse momento já havia perdido qualquer interesse em seguir aquela conversa, mas respondi " Virgínia ", ele então repetiu a pergunta " Mas qual seu nome DE VERDADE?". Meu coração parou, o frio passou numa fração de segundo e a raiva me tomou o corpo. Respondi prontamente "Este é meu nome de verdade", bravamente contra seu desrespeito. Ele disse, contragosto, " vou rezar por você ". E voltou ao seu estado anterior, afastando-se, mas ainda ao meu lado, aguardando o ônibus.

Não pensei duas vezes, sentindo o desprezo mascarado de piedade - que não mereço! - disse " posso te perguntar uma coisa?". Seus olhos brilhavam quando me olhavam, pensando que talvez suas palavras tivessem tocado meu coração a ponto de aceitar Jesus e a palhaçada toda que ele me dizia. Ajeitei meu tom de voz, e perguntei "E você, namora?" e dei uma risadinha provocativa. Queria ter encarnado o próprio exu só pra comprovar que entre Jesus e essa transfobia mascarada, eu era orgulhosamente travesti e ateia. Ele precisava de algum tempo, ar ou talvez um buraco para enfiar a cara para tamanha surpresa. Um letreiro aparecia sob sua cabeça, como naqueles gibis, "UM traveco me dando ideia?", ele riu desconcertado. "Namoro com Jesus?" (Pasmem! O oco era viado, platônico e daqueles de amigos imaginários). "Só com ele?", perguntei. Ele disse "Sim, ele está preparando um lindo casamento pra nós ".  To chocada! Não resisti:

- Veado, além de monogâmico, você caiu nesse papinho? Jesus diz 'Eu te amo' pra todas! Mas tá pra voltar há 2016 anos e nada, vai te deixar esperando no altar!

A cara fechou. Não sabia mais o que dizer. Meu ônibus passou, dei uma risadinha e caminhei alguns passos a frente para adentrar o ônibus, cheio. Na escada para subir, me virei e gritei " Ei! O demônio também me tocou e disse que vai comer seu cu hoje a noite!". O ônibus saiu, a porta fechou, e o boy com o rosto vermelho, do vento e da vergonha, foram de distanciando. Eu hen!

Vamos falar sobre o pau das travestis?

O pau das travestis é aquele tabu que ronda o moralismo da sociedade burguesa. Se criaram conceitos de passibilidade para nomear as pessoas trans que "conseguem" se "passar" por pessoas cis, isto é, "pessoas normais" segundo as leis burguesas de bons costumes. É também notório que tenham transformado além da identidade de gênero não cisnormativa, mas também os corpos destas pessoas em vergonha. Não a toa, para além dos altíssimos riscos da harmonização sem acompanhamento médico, as auto mutilações devido as opressões e não aceitação do corpo e/ou da genitália, e a utilização de métodos semi-suicidas como o silicone industrial como formas acessíveis para centenas de travestis e transexuais transformarem seus corpos, há um altíssimo nível de doenças e sofrimentos provocados pela vergonha de procurar qualquer serviço de saúde, por certo, porque a medicina capitalista, como denuncie outras vezes  não está a serviço da saúde humana e das suas variadas especificidades, mas da lucrativa indústria farmacêutica, sem falar dos convênios médicos.

Por isso, falar do pau das travestis é importante. Se é assim questionar esse tabu e o silêncio em torno da saúde e do pau das travestis encontraremos barreiras importantes, porque algumas correntes biologeticistas e deterministas do feminismo, como o é a vertente "radical", vão igualar o pau das travestis ao dos homens cis, unicamente com o argumento que ambos tem esta mesma genitália. Vão dizer que as travestis e transexuais não são mulheres ou pessoas não binárias, mas sim homem - pasmem! - e porque? Por conta do seu pau. Há vertentes reacionárias que chegam ao ponto de dizer que isso garante privilégios! Potencial estuprador! Relação de poder! A estas feministas, tudo se resume ao falocentrismo da sociedade patriarcal, que não diferencia gênero, identidade de gênero, nem as formas de dominação mais aperfeiçoadas pelo sistema capitalista que busca avançar no controle sob dos corpos e as idealizações e imaginações que podemos desenvolver para nossas identidades. 

Para essas feministas cis (!) a sociedade se divide em classes estabelecidas geneticamente e justamente pelos corpos é que se organiza a sociedade e suas relações de poder. O que não se sustenta, nem por um segundo, ao olharmos rapidamente para alguns importantes lideres políticos como Obama - homem negro - ou Dilma - mulher cisgênera - e perceber que independente de sua opressão, são representantes autênticos da burguesia e de seus interesses. Mas podemos abordar também de outro angulo, podemos ver que as mulheres trans após cirurgia não adquirem privilégios! ou mudam sua condição de opressão simplesmente pela alteração física de seus corpos. 

Enfim, enfrentado estes obstáculos, o que dizer sobre o pau das travestis? Em primeiro lugar, que esta parte de nosso corpo não determina nossa identidade, tampouco, nossa existência. Muito diferente dos homens cis, o pau das travestis, mesmo das que se orgulham e se puderem irão exibi-lo pelo mundo afora, não pode carregar consigo a soberania masculina que o patriarcado garante aos homens, pois não tem atrás de si, um aparelho Estatal, as leis e a polícia como mantedora desta ordem. Senão o é óbvio, expliquemos: atrás deste pau, há uma pessoa não binária ou mulher trans que vive marginalizada de direitos civis essenciais e recursos básicos de saúde, educação e emprego. Não a toa, muito pelo contrário de salários maiores do que os das mulheres cis, as pessoas trans não tem emprego formal, tendo 90% a prostituição como forma de sobrevivência.  Não concluímos os estudos, não estamos nos livros didáticos e não temos direito a nossa identidade reconhecida pelo Estado. Ou seja, a sociedade e o Estado como materialização da força de uma classe social não está a legitimar nossos corpos ou identidades, justamente o contrário, está para reprimir-nos.

Mas o que quero tratar de discutir são as profundas dores e sequelas de não se discutir sobre o pau das travestis. Sabe-se que a busca por urologista pelas travestis é raríssima. Muitas de nós, apesar de não rejeitar sua genitália, sente o gosto de "não poder ser" por inteira. A comum doença de infecção urinária pela insegurança de frequentar banheiros públicos é um dos sintomas dessas condições de opressão. Seja nas relações amorosas, onde os companheiros ignoram essa parte do nosso corpo. Seja nos hospitais e demais serviços médicos, onde não levam em conta nossa harmonização e nosso corpo não cisnormativo. Seja na família, onde a negação da nossa genitália é uma das vias de na infância tentar se auto afirma num gênero. É urgente então dar voz aos corpos em transição - e transição não significa partir da perspectiva de quem cruza uma ponte, onde o objetivo  determinado é chegar no lado oposto. Mas sim, da transformação da vida, da sua existência e do pertencimento do mundo cis, para o submundo trans e seus "castigos secretos".

Menos conclusivo, e mais propositivo a uma reflexão tão distante do cotidiano da maioria das pessoas, é tempo de abrir uma discussão sobre a importância da saúde e do desenvolvimento da sexualidade das pessoas trans em combate a compulsória submissão. É tempo de combater o capitalismo, defendendo uma nova ideia sobre os corpos e as condições materiais necessárias que reivindicamos para emancipar os corpos, como primeiro passo para garantir a emancipação das identidades. Onde as cirurgias sejam por uma opção, sem o alto risco da perda do orgasmo e da longa fila de espera (quase 200 anos!).

Vamos falar sobre o pau das travestis? Os corpos que gritam, mas não são ouvidos. Morrem, de abandono dos que nunca conheceram está historia.