Outono chegou atrasado, mas derrubou a temperatura com toda força. No ponto de ônibus era difícil esperar o ônibus com tantos ventos amargamente frios que me cortavam o rosto. O coração estava estável, há pouco rachado, agora já não querendo muita conversa ou aventura. Meu cabelo solto, armado (para o combate), vermelho fogo chamava atenção. Me cobria as orelhas e também parte do rosto e isso me fazia feliz, já com o pouco que me aquecia. Meus olhos, apesar de recém acordados depois de uma longa viagem, estavam atentos a cada ônibus que chegavam. Todos passavam, menos o que me levaria ao meu destino. Inferno!
Foi quando reparei, bem ao meu lado encostava um menino jovem, com seus 23 talvez 24 anos. Meus olhos então deixaram os ônibus que vinham de minuto a minuto e se divertiram ali, naquele rosto, no charme do frio que trazia certo mistério e curiosidade sobre este rapaz. Algumas pessoas passavam me encarando, desta vez, parecia que meu cabelo chamava mais atenção do que eu ser trans, por um ou outro motivo, me orgulhava e os olhares, já tão comuns e cotidianos, não me provocavam nenhum sentimento. Era nada além do costume. Ele então expressava alguma reação, nos distintos olhares que me cercavam. De repente ele também me olhava e isso me deixava inconfortavelmente alegre. Também não lhe tirava os olhos.
Ele então respirou fundo e se dirigiu a mim. "posso te falar uma coisa?". Meu coração acelerava, enquanto minha mente pensava " pode me falar o que quiser", ri pra mim mesma. Em fração de segundos, reparava no seu lábio e de quanto ele estava longe, no seu cabelo e o preto dos fios e seu par de olhos que me olhavam de forma tranquila. Respondi, claro.
"Eu não podia deixar de dizer que Jesus tocou meu coração pra te trazer a palavra dele, que te ama INDEPENDENTE DO QUE VOCÊ FAÇA OU SEJA".
Silêncio em todo meu corpo. Que chatice! Nao é a primeira vez que um " bom cristão " vem me pregar que mesmo sendo travesti (e sempre é este tom de "apesar do seu pecado/doença/escolha/quem você é, etc") Jesus te ama. Respondi educadamente "Ok". Mas ele insistiu em continuar, desta vez - como o foi mais mascarado da primeira - tocado pela transfobia, me perguntou "Qual seu nome?". Nesse momento já havia perdido qualquer interesse em seguir aquela conversa, mas respondi " Virgínia ", ele então repetiu a pergunta " Mas qual seu nome DE VERDADE?". Meu coração parou, o frio passou numa fração de segundo e a raiva me tomou o corpo. Respondi prontamente "Este é meu nome de verdade", bravamente contra seu desrespeito. Ele disse, contragosto, " vou rezar por você ". E voltou ao seu estado anterior, afastando-se, mas ainda ao meu lado, aguardando o ônibus.
Não pensei duas vezes, sentindo o desprezo mascarado de piedade - que não mereço! - disse " posso te perguntar uma coisa?". Seus olhos brilhavam quando me olhavam, pensando que talvez suas palavras tivessem tocado meu coração a ponto de aceitar Jesus e a palhaçada toda que ele me dizia. Ajeitei meu tom de voz, e perguntei "E você, namora?" e dei uma risadinha provocativa. Queria ter encarnado o próprio exu só pra comprovar que entre Jesus e essa transfobia mascarada, eu era orgulhosamente travesti e ateia. Ele precisava de algum tempo, ar ou talvez um buraco para enfiar a cara para tamanha surpresa. Um letreiro aparecia sob sua cabeça, como naqueles gibis, "UM traveco me dando ideia?", ele riu desconcertado. "Namoro com Jesus?" (Pasmem! O oco era viado, platônico e daqueles de amigos imaginários). "Só com ele?", perguntei. Ele disse "Sim, ele está preparando um lindo casamento pra nós ". To chocada! Não resisti:
- Veado, além de monogâmico, você caiu nesse papinho? Jesus diz 'Eu te amo' pra todas! Mas tá pra voltar há 2016 anos e nada, vai te deixar esperando no altar!
A cara fechou. Não sabia mais o que dizer. Meu ônibus passou, dei uma risadinha e caminhei alguns passos a frente para adentrar o ônibus, cheio. Na escada para subir, me virei e gritei " Ei! O demônio também me tocou e disse que vai comer seu cu hoje a noite!". O ônibus saiu, a porta fechou, e o boy com o rosto vermelho, do vento e da vergonha, foram de distanciando. Eu hen!
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