sábado, 30 de abril de 2016

Vamos falar do tesão sobre as travestis?

O Brasil conhecido como país que bate recordes de assassinatos de pessoas trans pelo mundo, chegou a ter dois homicídios por transfobia - ódio e aversão a pessoas não-cisgenêras - por dia durante o mês de janeiro desse ano. É também, não contraditoriamente, o país onde mais se busca pornografia com pessoas trans. Se pra alguns isto deveria ser um contradição, me explico: a maioria dos casos de homocidio contra travestis e mulheres trans ocorrem após sexo ou o interesse inconformado da atração física. Isto é, a maioria das travestis obrigadas a entregar seus corpos e realizar sexo para sobreviver, sobrevivem pouco a transfobia internalizada de seus "clientes" e flertes. Seja no "momento da descoberta" ou como ação de repulsa após o gozo, tão marginalizado e repugnante aos olhos da moral burguesa. O que evidencia que o desejo "do sexo proibido" e a vergonha pública de se relacionar com pessoas trans - como foi escancarado por diversos jogadores de futebol e outros casos que ganharam atenção da midia por "envolvimento de homens famosos" com travestis e transexuais - se combinam sob a ordem da repressão sexual e a humilhação das identidades trans, a forma obscura dos "castigos secretos" - para usar o termo de Karl Marx em "Sobre o suicídio" - das penúrias e atrocidades que as instituições "democráticas", a igreja e a família produzem contra a vida humana, e dos LGBT em particular.

O Brasil ao sediar a Copa do Mundo em 2014 expôs internacionalmente como é visto: o país do "sexo exótico", dos corpos objetos e do grande tráfico internacional de mulheres e crianças para fins sexual. A realidade é que a prostituição é, na maioria dos casos, um destino involuntário das mulheres trans e travestis. Sendo de algumas como forma de sobrevivência, outras como " modo de vida " imposto, isto é, ainda que não realizem sexo por dinheiro, somos constantemente tratadas e reconhecidas desta forma, involuntariamente.

Se por um lado, o alto índice de procura nos canais virtuais de pornografia comprova que a profunda miséria das relações afetivas, a qual cada vez mais surgem denuncias como esta e esta , não são resultados de uma " natural faltando interesse " ou "desejo minoritário". Comprova-se a tese que a profunda miséria sexual da sociedade burguesa, a qual reprime os extintos naturais da busca pelo prazer, reduzindo e encaixando o sexo à moralista concepção de família burguesa. 
Por outro lado, evidenciam que não é verdade que aos homens cis e heterossexuais está garantido o prazer sexual, uma vez que parte destes sentem-se atraidos por pessoas trans e por isso são reprimidos em seus desejos, recorrendo ao comércio "ilegal" da prostituição e do sexo pago. Aos demais homens há garantido um sexo limitado para a vida pública, enquanto seguem com o corpo limitado ao prazer à genitália para conservar o frágil conceito de heterossexualidade absoluta. 

Obviamente os companheiros de pessoas trans sofrem apenas um respingo que atinge em cheio o peito e a mente das pessoas trans. Enquanto não se falam sobre o pau das travestis, o prazer anal ou mesmo a busca por um sexo questionador e subversivo contra a ordem vigente. As travestis assim como as mulheres cis tem o direito ao prazer negado, onde as mulheres lésbicas não tem sequer reconhecido sua prática sexual, uma vez que a normatização do sexo heteronormativo não concebe a ideia de sexo sem pênis ou sem penetração. Somos os corpo assim como as sexualidade destinadas meramente ao prazer e ao tesão do homem.

Por trás dos suicídios e do transfeminicidio esconde-se os mais variados "castigos secretos" orquestrados pela sociedade burguesa, sem piedade alguma. Os mesquinhos e indiferentes encontram responsabilidades individuais para justificar tais atrocidades, ignorando propositalmente o descaso da ciência burguesa ausente na saúde e na atenção à população transgênera, as burocráticas leis deste Estado - instrumento de opressão da burguesia sob o conjunto das demais classes sociais - e regras para garantir direitos básicos elementares como ao reconhecimento da identidade, do nome e do gênero das travestis, homens e mulheres trans. A educação padronizada que se recusa cada vez mais incluir os debates sobre homo-lesbo-transfobia, escondendo StoneWall e todas as lutas e rebeliões LGBT existentes da história. A ideologia religiosa e conservadora que se dissemina nos programas televisivos, nas rádios e nas demais meios de comunicação que se transformam em dialeto nas filas de ônibus, nos olhares inquisitoriais e nas risadas cotidianas que perseguem as identidades que se recusam a obedecer as normas binárias e domesticadas ao capitalismo. A perseguição por grupos de extermínio, a ação da polícia cotidiana nos pontos de prostituição, a culpa induzida pela igreja, da família e da moral conservadora são só alguns dos elementos que denunciamos evidenciando a responsabilidade do Estado e da burguesia para o sangue e as mortes de LGBT.  

A miséria sexual produto da repressão sexual ideológica, institucional e dos castigos secretos se mantém sob a ordem burguesa estabelecida sobre vida pública. O lado contrário da mesma moeda guarda a hipocrisia dos direitos da vida privada, onde teoricamente "tudo se pode", só pode se concretizar para um punhado de parasitas capitalistas, onde novamente a economia, sua condição de classe, é determinante para quem adquiri o direito garantido a todos, pelas letras mortas das constituições em todo o mundo. Esse direito de poucos só podem existir sob o custo da exploração e opressão de centenas de milhares de LGBT, mulheres e pessoas que se relacionam com pessoas trans.

Por isso é urgente falar contra as tentativas permanentes de manter as pessoas trans e sua vida como um gueto obscuro. Quando falamos sobre o tesão sobre as travestis, falamos do fetiche criado diretamente por estas estruturas, resultando num sexo pragmático, com apenas um único sujeito "merecedor de orgasmos" a partir de uma limitada liberdade dos corpos cisgeneros. Esse fetiche, não atoa como explicamos, não é produto de uma ignorância ou ideologia avulsa, mas baseada nas condições objetivas da estimativa de 90% das identidades trans estarem afogadas no submundo da prostituição, da marginalização e do altíssimos índices de suicídio. Enquanto houver capitalismo, a submissão e a dor de milhares de nós seguirá transformando-se em furia, até que o ódio encontre vazão numa estratégia aliada a classe trabalhadora, a única classe verdadeiramente revolucionária capaz de paralisar a produção e colocar sua força em enfrentamento à burguesia e sua moral, tão alheia aos interesses da emancipação humana, sexual e identitária.

sexta-feira, 29 de abril de 2016

Silêncio

Apesar de muda
Os olhares mudaram
E quando fechados
O toque acalma a alma
Já encontro beleza no riso
E a certeza de querer um beijo
Fora de hora
Fora da cama
Ainda que seja um risco

Não chegamos aqui pela paixão
Disse tantas vezes, que quase acreditei que fosse impossível
Conservadora eu, que ridículo
Te gosto enquanto amigo
Porque não ser sincera contigo?

Medo de mudar
De você também não dizer
Como hoje não te digo
Te engano então
Pra manter sigilo

Pareço louca
Porque sou
Mas não queria repetir a cena
Nem de ser rejeitada
Nem de dizer que estou pensando essa parada
Mas resisti até hoje à este charme
Meu orgulho achava ultraje
Dizer que te quero nos dias comuns
Sem desculpa ou pretexto
Deitar no teu peito
E sentir-me dona de mim
Ao lado de meu companheiro

Tocado pela transfobia divina

Outono chegou atrasado, mas derrubou a temperatura com toda força. No ponto de ônibus era difícil esperar o ônibus com tantos ventos amargamente frios que me cortavam o rosto. O coração estava estável, há pouco rachado, agora já não querendo muita conversa ou aventura. Meu cabelo solto, armado (para o combate), vermelho fogo chamava atenção. Me cobria as orelhas e também parte do rosto e isso me fazia feliz, já com o pouco que me aquecia. Meus olhos, apesar de recém acordados depois de uma longa viagem, estavam atentos a cada ônibus que chegavam. Todos passavam, menos o que me levaria ao meu destino. Inferno!
Foi quando reparei, bem ao meu lado encostava um menino jovem, com seus 23 talvez 24 anos. Meus olhos então deixaram os ônibus que vinham de minuto a minuto e se divertiram ali, naquele rosto, no charme do frio que trazia certo mistério e curiosidade sobre este rapaz. Algumas pessoas passavam me encarando, desta vez, parecia que meu cabelo chamava mais atenção do que eu ser trans, por um ou outro motivo, me orgulhava e os olhares, já tão comuns e cotidianos, não me provocavam nenhum sentimento. Era nada além do costume. Ele então expressava alguma reação, nos distintos olhares que me cercavam. De repente ele também me olhava e isso me deixava inconfortavelmente alegre. Também não lhe tirava os olhos.

Ele então respirou fundo e se dirigiu a mim. "posso te falar uma coisa?". Meu coração acelerava, enquanto minha mente pensava " pode me falar o que quiser", ri pra mim mesma. Em fração de segundos, reparava no seu lábio e de quanto ele estava longe, no seu cabelo e o preto dos fios e seu par de olhos que me olhavam de forma tranquila. Respondi, claro.

"Eu não podia deixar de dizer que Jesus tocou meu coração pra te trazer a palavra dele, que te ama INDEPENDENTE DO QUE VOCÊ FAÇA OU SEJA".

Silêncio em todo meu corpo. Que chatice! Nao é a primeira vez que um " bom cristão " vem me pregar que mesmo sendo travesti (e sempre é este tom de "apesar do seu pecado/doença/escolha/quem você é, etc") Jesus te ama. Respondi educadamente "Ok". Mas ele insistiu em continuar, desta vez - como o foi mais mascarado da primeira - tocado pela transfobia, me perguntou "Qual seu nome?". Nesse momento já havia perdido qualquer interesse em seguir aquela conversa, mas respondi " Virgínia ", ele então repetiu a pergunta " Mas qual seu nome DE VERDADE?". Meu coração parou, o frio passou numa fração de segundo e a raiva me tomou o corpo. Respondi prontamente "Este é meu nome de verdade", bravamente contra seu desrespeito. Ele disse, contragosto, " vou rezar por você ". E voltou ao seu estado anterior, afastando-se, mas ainda ao meu lado, aguardando o ônibus.

Não pensei duas vezes, sentindo o desprezo mascarado de piedade - que não mereço! - disse " posso te perguntar uma coisa?". Seus olhos brilhavam quando me olhavam, pensando que talvez suas palavras tivessem tocado meu coração a ponto de aceitar Jesus e a palhaçada toda que ele me dizia. Ajeitei meu tom de voz, e perguntei "E você, namora?" e dei uma risadinha provocativa. Queria ter encarnado o próprio exu só pra comprovar que entre Jesus e essa transfobia mascarada, eu era orgulhosamente travesti e ateia. Ele precisava de algum tempo, ar ou talvez um buraco para enfiar a cara para tamanha surpresa. Um letreiro aparecia sob sua cabeça, como naqueles gibis, "UM traveco me dando ideia?", ele riu desconcertado. "Namoro com Jesus?" (Pasmem! O oco era viado, platônico e daqueles de amigos imaginários). "Só com ele?", perguntei. Ele disse "Sim, ele está preparando um lindo casamento pra nós ".  To chocada! Não resisti:

- Veado, além de monogâmico, você caiu nesse papinho? Jesus diz 'Eu te amo' pra todas! Mas tá pra voltar há 2016 anos e nada, vai te deixar esperando no altar!

A cara fechou. Não sabia mais o que dizer. Meu ônibus passou, dei uma risadinha e caminhei alguns passos a frente para adentrar o ônibus, cheio. Na escada para subir, me virei e gritei " Ei! O demônio também me tocou e disse que vai comer seu cu hoje a noite!". O ônibus saiu, a porta fechou, e o boy com o rosto vermelho, do vento e da vergonha, foram de distanciando. Eu hen!

Vamos falar sobre o pau das travestis?

O pau das travestis é aquele tabu que ronda o moralismo da sociedade burguesa. Se criaram conceitos de passibilidade para nomear as pessoas trans que "conseguem" se "passar" por pessoas cis, isto é, "pessoas normais" segundo as leis burguesas de bons costumes. É também notório que tenham transformado além da identidade de gênero não cisnormativa, mas também os corpos destas pessoas em vergonha. Não a toa, para além dos altíssimos riscos da harmonização sem acompanhamento médico, as auto mutilações devido as opressões e não aceitação do corpo e/ou da genitália, e a utilização de métodos semi-suicidas como o silicone industrial como formas acessíveis para centenas de travestis e transexuais transformarem seus corpos, há um altíssimo nível de doenças e sofrimentos provocados pela vergonha de procurar qualquer serviço de saúde, por certo, porque a medicina capitalista, como denuncie outras vezes  não está a serviço da saúde humana e das suas variadas especificidades, mas da lucrativa indústria farmacêutica, sem falar dos convênios médicos.

Por isso, falar do pau das travestis é importante. Se é assim questionar esse tabu e o silêncio em torno da saúde e do pau das travestis encontraremos barreiras importantes, porque algumas correntes biologeticistas e deterministas do feminismo, como o é a vertente "radical", vão igualar o pau das travestis ao dos homens cis, unicamente com o argumento que ambos tem esta mesma genitália. Vão dizer que as travestis e transexuais não são mulheres ou pessoas não binárias, mas sim homem - pasmem! - e porque? Por conta do seu pau. Há vertentes reacionárias que chegam ao ponto de dizer que isso garante privilégios! Potencial estuprador! Relação de poder! A estas feministas, tudo se resume ao falocentrismo da sociedade patriarcal, que não diferencia gênero, identidade de gênero, nem as formas de dominação mais aperfeiçoadas pelo sistema capitalista que busca avançar no controle sob dos corpos e as idealizações e imaginações que podemos desenvolver para nossas identidades. 

Para essas feministas cis (!) a sociedade se divide em classes estabelecidas geneticamente e justamente pelos corpos é que se organiza a sociedade e suas relações de poder. O que não se sustenta, nem por um segundo, ao olharmos rapidamente para alguns importantes lideres políticos como Obama - homem negro - ou Dilma - mulher cisgênera - e perceber que independente de sua opressão, são representantes autênticos da burguesia e de seus interesses. Mas podemos abordar também de outro angulo, podemos ver que as mulheres trans após cirurgia não adquirem privilégios! ou mudam sua condição de opressão simplesmente pela alteração física de seus corpos. 

Enfim, enfrentado estes obstáculos, o que dizer sobre o pau das travestis? Em primeiro lugar, que esta parte de nosso corpo não determina nossa identidade, tampouco, nossa existência. Muito diferente dos homens cis, o pau das travestis, mesmo das que se orgulham e se puderem irão exibi-lo pelo mundo afora, não pode carregar consigo a soberania masculina que o patriarcado garante aos homens, pois não tem atrás de si, um aparelho Estatal, as leis e a polícia como mantedora desta ordem. Senão o é óbvio, expliquemos: atrás deste pau, há uma pessoa não binária ou mulher trans que vive marginalizada de direitos civis essenciais e recursos básicos de saúde, educação e emprego. Não a toa, muito pelo contrário de salários maiores do que os das mulheres cis, as pessoas trans não tem emprego formal, tendo 90% a prostituição como forma de sobrevivência.  Não concluímos os estudos, não estamos nos livros didáticos e não temos direito a nossa identidade reconhecida pelo Estado. Ou seja, a sociedade e o Estado como materialização da força de uma classe social não está a legitimar nossos corpos ou identidades, justamente o contrário, está para reprimir-nos.

Mas o que quero tratar de discutir são as profundas dores e sequelas de não se discutir sobre o pau das travestis. Sabe-se que a busca por urologista pelas travestis é raríssima. Muitas de nós, apesar de não rejeitar sua genitália, sente o gosto de "não poder ser" por inteira. A comum doença de infecção urinária pela insegurança de frequentar banheiros públicos é um dos sintomas dessas condições de opressão. Seja nas relações amorosas, onde os companheiros ignoram essa parte do nosso corpo. Seja nos hospitais e demais serviços médicos, onde não levam em conta nossa harmonização e nosso corpo não cisnormativo. Seja na família, onde a negação da nossa genitália é uma das vias de na infância tentar se auto afirma num gênero. É urgente então dar voz aos corpos em transição - e transição não significa partir da perspectiva de quem cruza uma ponte, onde o objetivo  determinado é chegar no lado oposto. Mas sim, da transformação da vida, da sua existência e do pertencimento do mundo cis, para o submundo trans e seus "castigos secretos".

Menos conclusivo, e mais propositivo a uma reflexão tão distante do cotidiano da maioria das pessoas, é tempo de abrir uma discussão sobre a importância da saúde e do desenvolvimento da sexualidade das pessoas trans em combate a compulsória submissão. É tempo de combater o capitalismo, defendendo uma nova ideia sobre os corpos e as condições materiais necessárias que reivindicamos para emancipar os corpos, como primeiro passo para garantir a emancipação das identidades. Onde as cirurgias sejam por uma opção, sem o alto risco da perda do orgasmo e da longa fila de espera (quase 200 anos!).

Vamos falar sobre o pau das travestis? Os corpos que gritam, mas não são ouvidos. Morrem, de abandono dos que nunca conheceram está historia.

Barba, pelos e desejos

Roça a barba, a coxa, os lábios
Meu pescoço é um descalabro
Me traz suspiros,
diz no meu ouvido
"Calma" - cínico!
Me provoca e eu sou delírio


Outono começou intenso
Me instiga desejo
Mas não me rendo
Ao teu charme
Talvez só nesse momento
Te beijo
Me seguro, mas não me aguento
Que beijo!
Coloco sua mão no meu peito
Você leva jeito
Pra me enlouquecer

terça-feira, 26 de abril de 2016

Um gosto contraditório de ser quem não se pode ser


Há quase um ano, estava com o coração explodindo quando entrava no consultório trans (CRT - Santa Cruz) para passar com a endocrinologista e conseguir meus primeiros hormônios. Escrevi uma pequena crônica para dizer quão feliz eu estava, mas quão contraditório era todo esse procedimento. De lá pra cá, vivi uma montanha russa de emoções, medos, inseguranças e dilemas sobre minha identidade de gênero. Algumas conquistas, e de contra partida mais humilhações e instabilidade.

Hoje me ligaram do ambulatório para dizer que eu que estava na fila desde 2013 para o atendimento psicológico (isto é, processo obrigatório para atestar em laudo meu Código Internacional de Doença e poder iniciar o tratamento hormonal), finalmente havia conseguido uma vaga. A sorte que há um ano já havia conseguido uma psicóloga da Unidade Básica de Saúde que não me atestou como doente mental, mas como "indivíduo livre para se desenvolver socialmente com o gênero que me identifico". Assim dei início a minha hormonização, mas todos esses anos a falta de um tratamento psicológico efetivo custava caro. As dificuldades de me expor e ser sincera com medo disso permitir algum possível veto a seguir este tratamento, influenciou muito e me fez voltar a escrever (e a respirar).

Nos primeiros dias, eram "pílulas mágicas", não poderiam mudar absolutamente nada, mas a sensação era que estava dando um passo a frente. Decisão difícil, se submeter a hormônios que nas bulas nada mencionavam a minha existência, pelo contrário, reafirmavam os corpos da mulheres cis. Nos primeiros meses, meu peito se tornou muito sensível, descer as escadas eram a dolorosa felicidade de "algo ali se mexer". Mas já na próxima consulta, quatro meses depois, a "segurança" que buscava em fazer acompanhamento da minha harmonização caiu por terra. Uma semana antes da consulta meus comprimidos acabaram, e o que começava a se desenvolver, retrocedeu. Quando cheguei na endocrinologista, os exames estavam ótimos, mas os hormônios estavam em falta. Então, foi receitado outro, que eu deveria comprar por conta própria. Comecei então a comprar na farmácia e junto a isso, ver que além da ausência de estudos profundos sobre nossa saúde e a precária situação que temos de sobrevivência, no próprio ambulatório voltado as pessoas trans, nada é tão diferente assim. Não havia uma "continuidade obrigatória" da medicação, mas em um ano, houve três pílulas de hormônios femininos diferentes.

Com o passar dos meses, meu corpo começava a ter mais hormônios femininos do que masculinos, graças ao bloqueador de testosterona que tomava junto aos hormônios femininos. Meu corpo entrava numa ebulição, TRANS-formando-se. Até que  no dia 07 de Junho de 2015 explodi. Meu corpo cada dia mais exigia mais mudanças, menos paciência comigo mesma e uma solidão que atingia a alma elevada a vigésima potência. Vim do trabalho pra casa chorando, estava só. Acendi um, dois, três cigarros e o choro engolia minha falta de palavras. No fundo, sabia que não adianta gritar, nem explicar o que sentia. Meu corpo e minha mente estavam sendo esmagados pelos padrões que nunca iria me encaixar, uma pressão cisnormativa de como era vista e o quanto ainda faltava "pra ser mulher de verdade". Não adiantava. O choro não iria embora, a não ser que eu fosse primeiro. Não me esqueço da canção de rap que se repetia, sem pausa, misturada com meus soluções e dificuldade de respirar. Até quando poderia aguentar está situação? Era estar nua o tempo todo, e as risadas sobre o meu corpo ensurdecendo meus ouvidos. Eram já centenas de mulheres trans que tinham sido vencidas por essa sociedade transfobica e capitalista que destrói nossos corações e nossas potencialidades de realmente sermos. Era a luta com meu corpo como campo de batalha que o risco de não aguentar, de sucumbir à dor e a falta de esperança, me marcava e ficará pra sempre.

Me doia ser tão consciente do mundo que vivo e saber que ser revolucionária não diminuía em nada a dor que sentia. Sim, as respostas que dei e sigo dando apontam pra minha emancipação, pra luta revolucionária, para combater na política e na vida, a miséria das relações e também da ideologia que nos quer amedrontar e fazer desistir. Mas não parou de doer, um segundo que fosse.

Desci as escadas, o rosto inchado, os hormônios eram uma parte do que me fragilizava, o mundo tal como é, era todo o resto. Os comprimidos criaram em mim uma sensibilidade tão própria deste momento de me construir como sou, que não me servia mais as armaduras, nem a própria anulação de mim mesma, precisava encarar de frente e não me sentia pronta pra isso. Lembro de tomar o resto de uma cachaça que estava há tempos no congelador e não lembro mais quando ao certo apaguei daquele pesadelo.

No dia seguinte, eu estava muda. Já não me sentia parte de nada e justamente pela minha subjetividade não era capaz ou não valia a pena tentar reproduzir tudo o que estava na minha cabeça. Era uma bagunça que mesmo hoje ainda não saberia explicar. Era explosão, tudo em cacos. Aquele momento onde parece que todo o peso de ser quem se é numa sociedade que nada se pode ser, me deixava presa ao chão, sem poder me levantar. Nada me interessava, até porque nada mudaria a situação de se sentir um monstro aos olhos alheios, uma mutação de algo que não está de um lado (homem) e nem do outro (mulher).

Os dias passavam, e o vazio não me deixava. Encontrei um moço que me deu algumas borboletas no estômago e sorria enquanto me olhavam nos olhos. Meu corpo, pela primeira vez, em contra dos hormônios que cada vez mais castravam minha sexualidade e meu libido, queria se entregar a ele. E me entreguei. De cabeça, e de corpo também. Comecei então a me formar em poesia, e a cada batida que meu coração dava, escrevia uma nova. Pela primeira vez, me sentia bem com outra pessoa e queria realmente te-la por perto. Ele, ainda menino, não entendia nada do que eu estava passando e depois descobriria que não se importava, mas em cada beijo ou toque que passava pelo meu corpo, provocava um alívio e uma felicidade de superar o mito de que nunca poderia encontrar alguém. Escrevia poesias, em papel e no corpo dele, com lápis e com minha língua. Era um momento que me libertava e me sentia corajosa de estar vivendo algo assim. Os poucos abraços e mesmo o silêncio que sempre existiu entre nós, me preenchiam, acostumada com a miséria do capitalismo, achava que já era muito. Era intenso. E mesmo ouvindo de que era melhor não gostar tanto assim, não podia ser de outra forma. Ele era doce e ao mesmo tempo com quem eu mais queria dividir meus pensamentos. Mas era pesado demais e por vezes me convenci de não falar. Então, era mais poesia.

Nos primeiros dias que saímos, sentia o peso da cisnormatividade. Em cada ação e em cada momento me preocupava como ele me via, ainda que eu não conseguia perguntar, por medo das respostas. O sexo apesar de muito bom, começava também a expressar estas pressões. A minha relação comigo mesma, havia mudado muito com a castração química, e pouco conseguia me masturbar ou me sentir bem com essas mudanças. Com os meses, perdia não apenas o libido mas a intensidade até no fim o próprio gozo. Estar com ele também era difícil, porque no sexo, uma parte de mim ele ignorava. Tentei evitar. Porque abrir qualquer discussão significava colocar todo este debate, eu sei... Me colocar por inteira, e isto colocava tudo em risco. Já que num país tão hipócrita, as pessoas conseguem fingir descaradamente que "se confundiu" ou "não sabia" que somos trans, talvez para estar com ele, precisaria ser sempre metade. Mas isso só comprovava que não existia espaço para ter uma relação, pois mesmo estando juntos, mesmo  enquanto ele ainda não via mais ninguém, eu sempre seria a "outra", enquanto ele espera por alguém. Ele dizia que gostaria de namorar, mas eu não era uma opção. Nunca me fez um elogio e mesmo dizendo que tinha um jeito especial de gostar de mim, e acredito que houvesse mesmo, não era o bastante para equilibrar o peso de estar ao meu lado.

Os riscos me davam calafrios, mas não poderia construir uma relação que também não fosse sincera, então melhor seria jogar tudo pro ar, do que chegar até aqui e desistir de quem eu sou. Ele não entendia e eu mal poderia me explicar. Ele disse "não acho que seja uma questão de atraso, mas de não querer mesmo" e partiu meu coração como tantas outras vezes que faria depois.

Numa dessas tardes, de altos e baixos, meu corpo novamente era o centro dos meus medos. Ele me deixaria pelo meu corpo? Ele esperaria os resultados? Mais que isso, eu consigo esperar mais por resultados? Corri, desci ate a farmácia e comprei uma Perlutan, hormônio injetável - o mais utilizado e contra indicado pelas travestis. Minha médica do CRT já havia dito, incansáveis vezes, que era contra o uso desse hormônio. Mas os que me davam, no que adiantavam? É o desespero que me tomava conta, comprei o hormônio, mas não queriam me aplicar sem receita. Grande dilema! Procurei duas outras farmácias e todas se recusavam. Entrei numa última, pedi então a seringa e senão fosse por eles, eu mesma aplicaria. E lá, me aplicaram (e aplicam até hoje). Decidi então, tomar por conta meus hormônios e invés de seguir no SUS sem medicamentos e sem coragem de contar as médicas que havia decidido pelo meu corpo e qual hormônio iria tomar. O problema é que além dessa médica não conseguia passar em qualquer outro médico, porque não entendem meu corpo e constantemente não conseguem respeitar minha identidade de gênero. Chorava sozinha, tantas vezes, só querendo entender o que dizia meu corpo, o que estava mudando, no que me transformava.

Nos encontramos, eu e o boy, mais algumas vezes e de agosto até janeiro essas idas e vindas instigaram meu corpo e contribuíam para mais crises de quem eu era e de como lutar para ter minha identidade de gênero orgulhosa, pois a cada dia, a vergonha e os ataques vinham mais fortes. Chegava a desejar ser outra só para ele poder me querer por inteira. Só pra ter a chance dele também gostar de mim. Com muita coragem, ainda nua, deitada no seu peito,  perguntei a ele, se via que meu corpo mudava, meu seios cresciam... Tremia, enquanto olhava pra ele, esperava uma resposta. Mas não houve mais que um sim timido, percebia então que ele não poderia ser uma muleta, era um indivíduo que também queria ser livre. Não o culpo, e aprendi a deixá-lo ir. Ainda que levasse consigo a segurança sob meu corpo e meus desejos já não reprimidos.

Depois já com o Perlutan e uma bomba quinzenal de hormônios no meu organismo decidi parar de fumar. Os altos índices de trombose, de outros problemas de saúde, me faziam refletir como revolucionária que precisava sobreviver mais do que os 35 anos previstos para as travestis. Mas abrir mão do cigarro, era abrir mão do minha única companhia permanente e anesteciante. Parei dois meses, do fim de novembro a fevereiro quando outra crise viria.

No fim do ano, acordei cedo e fiquei numa fila para um objetivo incerto. Precisava dar os primeiros passos para mudar definitivamente meu nome. Já não me cabiam mais conviver com "César Augusto" em meus documentos. Não existia mais aquela pessoa e não me trazia boas sensações ter de me explicar todas as vezes que apresentava o documento. Não era sobre vergonha do passado, tampouco querer disfarçar que sou trans, mas uma luta para o Estado reconhecer minha identidade. Demorou muito, mas consegui uma advogada. Conversamos, e ela muito educada se mostrou interessada em defender meu caso. Entramos com o processo e sem data de previsão, torcia para mudar meu nome antes de morrer, pelo menos ter meu nome respeitada na lápide. Então, um mês depois, surpreendentemente, vejo a notícia, meus olhos desciam acompanhando o veredito no ritmo que se encheram de lágrimas enquanto eu lia. Finalmente, estava o Estado reconhecendo minha identidade? Estava dando outro grande passo na minha e dessa vez era definitivo, não poderiam arrancar de mim. Não poderiam mais me chamar por um nome que não me pertence.

Na mesma semana, me organizei pra ler os documentos pensando que inclusive pela agilidade do processo e por ter um laudo não patologizante poderia contribuir com tantas outras trans que precisam deste direito e não conseguem acessa-lo. Mais decepção impossível. A sentença era mentirosa, se baseava em documentos que não tinha apresentado (como passar em psiquiatra que nunca passei) e formulações bizarras como "o transsexualismo se da a partir de uma anomalia no sistema nervoso central". Oi? Que Estado hipócrita! E para piorar, aceitaram mudar meu nome, mas insistem em manter o gênero masculino. Não reconhecem, nem por um segundo, nosso direito a identidade de gênero. Que somos o que queremos ser.

Um gosto amargo, das humilhações e da contrapartida das vitórias parciais. Não me arrependo nem de quem sou, nem das paixões, nem dos enfrentamentos diários. E me sinto muito mais forte hoje. Sou uma revolucionária e minha vida é guiada por problemas sociais, pela histórica tristeza da humanidade que é ter sua essência roubada por este sistema capitalista. Todavia, não sinto menos o peso de ser travesti, não dói menos. A força está em saber transformar, quando possível, esta dor em ódio. E para cada obstáculo que nos impõem, resgatar Stonewall. Se Marsha enfrentou a polícia e disse " nenhum orgulho para alguns, sem liberdade para todos", eu sou apenas uma aprendiz. Mas vou crescer.

Meu corpo, meu campo de batalha: uma pequena conquista pra quem sonha com a emancipação



Quatro dias sem fumar, em vez de fumar um cigarro atrás do outro, como seria de costume quando fico nervosa. Quase enlouquecendo. A cada dia que passava, riscava em minha agenda e cronometrava as horas que ainda faltavam. Tentava me convencer a não ser tão esperançosa, pois outras consultas médicas já haviam me desapontado com a longa espera para receber legitimamente meu tratamento hormonal.

Em dezembro de 2013, passei na primeira consulta médica no Ambulatório de Travestis e Transexuais, na Santa Cruz. Um dos dois únicos lugares de São Paulo que possuem tratamento hormonal especializado e onde pode-se encaminhar também para a realização da "famosa" (e tão curiosa) cirurgia para homens e mulheres trans sentirem-se mais confortáveis, mais felizes, ou em alguns casos não deprimidas com seus corpos.

Todos os dias que esperei por este tratamento, vi de frente os avanços e contradições do sistema público de saúde para com as pessoas trans. Afinal, trabalho na saúde e tive de fazer diversos acompanhamentos com clínico geral, psicóloga e endocrinologista. Construção, como é minha identidade - e não é todos assim? De acordo com a vida, do que nos foi ensinado, do que nos foi apresentado, do que nos foi permitido e de como nos relacionamos com o mundo afora de nós mesmas? -, fui conhecendo cada vez mais sobre mim mesma e sobre o que é ser uma travesti na sociedade capitalista, no Brasil, em São Paulo, e inclusive trabalhando na saúde pública.

Mas, então, finalmente foi nessa segunda-feira. Fui trabalhar às 7 horas da manhã e o relógio parecia não acelerar o tempo para obter a resposta. No meu armário estava o Parecer Psicológico necessário para conseguir uma autorização e as prescrições médicas para começar o tratamento hormonal.

Fiquei pensando se agora seria a minha vez de poder efetivamente construir meu corpo de acordo com quem eu sou e quero ser. Há um ano consegui meu nome social no Crachá do trabalho e hoje todos os funcionários reconhecem minha identidade, ainda que na justiça ainda não tenha dado nem os primeiros passos para a mudança de nome. Sem dúvidas, esse direito básico de ter um trabalho registrado e poder ser eu mesma nele é um ponto fora da curva da situação da maioria das travestis.

Ao me encontrar com uma psicóloga uma vez por semana, como etapa necessária para conseguir a autorização médica e começar o tratamento hormonal, tive muita dificuldade de confiar na nela, mesmo ela me dizendo que não estava ali para me autorizar ou desautorizar, para "investigar" ou padronizar minha identidade. Numa sociedade tão opressora, conseguir uma psicóloga que enxergue estas consultas como um atendimento à minha saúde em vez de uma maneira de policiar meu corpo e minha identidade, ao invés de me desmoralizar ainda mais colaborando com as ofensas e desprezos diários ou, na "melhor das hipoteses", me encaminhando para o tratamento como medida para "curar", "tratar", "resolver" a minha disforia, como chamam, ou o "transtorno" como diz a Organização Mundial de Saúde (OMS). Foi difícil confiar na minha psicóloga, porque mesmo ela sendo tão rara na psicologia quanto eu no mundo do trabalho, ainda me sentia algemada a ela, por imposição.

Quando terminei de almoçar, vi que estava no horário. Avisei minhas colegas de trabalho que iria na consulta e, uma delas, Rosana, grande amiga minha, me deu um abraço e me desejou boa sorte. Fui. Corria e meu coração explodia, o ônibus era lento demais, o metrô muito quieto e a insegurança de qual seria a resposta hoje já me dava calafrios. Vão me negar por mais quanto tempo? Podem eles decidir por mim sobre meu corpo? A longa espera expulsou quantas travestis e transexuais da segurança na hormonização com acompanhamento médico? Os resultados de tomar por conta própria, do uso do silicone industrial poderão ser revertidos? São apenas 35 anos que esperam que sobrevivamos, no submundo.

Passei pela recepção, entreguei minha carteirinha. "Sala 17, só depositar a ficha". Sentei. Me levantei e bebi água. Sentei novamente. Nada... Mais espera. Tanto tempo esperando e aqueles minutos pareciam ser todos estes dois anos."Virgínia?" disse a médica endocrinologista ao meu lado. "Sim" respondi, enquanto me levantava e controlava meu coração para não sair pela boca.

Nos sentamos na sala médica. Ela buscou os exames correspondentes aos 11 tubos de sangue que tirei no mês passado especialmente para esta consulta. "Está tudo em ordem". Pediu para ler o Parecer Psicológico, o entreguei com orgulho. Neste Parecer, diferentemente dos que via na internet, não constava o CID (Código Internacional de Doenças, no qual somos representadas no CID 10, F-64 como Travesti-Bivalente, Transexualismo, entre outros). Pelo contrário, segundo as palavras de minha psicóloga: "Como condição humana estamos em constante transformação, e nessa metamorfose vamos nos fazendo a cada expressão e escolhas que realizamos (...) e nessa condição, Virginia vem realizando seu modo de ser no mundo, construindo a cada experiência seu existir que não se limite somente a sua sexualidade e muito menos a sexualidade cristalizada dos padrões de normalidade colocados socialmente".

Esse simples texto era quase uma história de contos de fadas, uma vez que meus amigos e amigas já receberam as piores palavras para descrever suas identidades. Nada de liberdade, nada de construção, nada de direitos, mas ofensas, menosprezo e patologização marcavam as tristes cartas que garantiam a continuidade do tratamento hormonal, enquanto invisibilizavam os indivíduos e oprimia suas identidades por trás daquela folha, que nunca poderia descrevê-los.

"Virgínia, você precisa assinar este termo de responsabilidade, declarando ciência sobre todas as transformações reversíveis e irreversíveis em seu corpo. Sabendo das possibilidade de resultados indesejados e que sua identidade de gênero não começa a partir do tratamento hormonal". Sorri. Li atenciosamente, afinal, a minha saúde era o motivo de estar fazendo este acompanhamento. Perguntei sobre o uso de álcool, cigarro junto as medicações, quais atenções eu deveria ter para saber se havia algo de errado com a resposta de meu organismo. Assinei, sorri de novo. Não me aguentava em mim. Finalmente, com 22 anos vou dar início a algo que quero desesperadamente desde os 18. E que poderia ter desejado ainda antes, se não fosse ideologicamente bombardeada por uma ideia que não controlava meu próprio destino, não construía minha própria identidade e não havia nada além do sistema binário de homens (cis) e mulheres (cis).

"Esperar não valeu a pena?" Minha mãe me perguntou, naquela noite. É claro que o tempo, para nós duas, nos mostrou a melhor solução desde que saí de casa e pudéssemos reconstruir uma relação entre nós. "Esperar para viver algo que já decidi, esperar pela saúde disponibilizar apenas dois locais especializados invés de todos os hospitais tratarem isso como uma questão de saúde, esperar enquanto milhares de nós não podem esperar, enquanto milhares de nós - e era esse um dos meus maiores medos - morre pelas mãos da transfobia estrutural sem ter conseguido ser de espírito e corpo o que queria. Não foi o tempo ou a espera que fez isto valer. Foram todos meus amigos e camaradas que estiveram ao meu lado, foram as conversas, o choro compartilhado, a agonia dividida, mas principalmente foi conhecer a história de lutadores como Zumbi dos Palmares, Rosa Luxemburgo, foi conhecer a história dos oprimidos que nunca desistiram, nunca se curvaram, nunca se envergonharam de serem os insurrectos que colocariam abaixo toda a forma de opressão. É minha fé convicta na revolução e nos trabalhadores que ergueu minha cabeça, moveu meu corpo e preencheu meu peito tantos dias e noites para não apenas me enxergar sozinha, mas ver que para além de trans, sou uma trabalhadora, sou uma revolucionária".

Naquela noite, mesmo com meu peito preenchido e a felicidade me contemplando, dormi com um gosto estranho, uma contradição já me assombrava. A conquista dos hormônios não garantiria de nenhuma forma minha emancipação, muito menos tornava mais livre minha construção da identidade de gênero. A transfobia aumentaria? Então, meu ódio também. A violência deste um ano e meio de espera, e os caminhos que pude desviar que agridem tantas travestis e todas as identidades que não seguem o padrão cisnormativo não se apaga com essa mudança. O Estado segue responsável pela violência que sofremos da mesma maneira que pela nossa falta de direitos básicos.


Entre homem e mulher: Sou dona da minha Alma



Esses dias uma pessoa não binária - que não aceita a binaridade homem/mulher -, me perguntou "me desculpe a pergunta, mas você é nb (não binária)?" respondi "até tento, mas a cisnormatividade não ajuda". Ela riu. A noite, conversando com minha amiga Bea, e pensando a minha construção em particular, e as identidades trans, em geral, conversamos sobre as imensas dificuldades que temos para construir no capitalismo uma identidade de gênero verdadeiramente livre e emancipadora, capaz de expressar na sua potencialidade as distintas expressões e liberdades que nossos corpos e mentes, em constante mutação e renovação, querem ser.

Por isso, mais uma vez, me vi escrevendo e expondo-me do ridículo ao contraditório, para aproximar os olhos e o coração daqueles que desconhecem a vivência trans, como foi libertador pra mim contar minhas expectativas e a experiência da minha construção de gênero, dar uma perspectiva do mundo desde o corpo, o toque e a voz de uma travesti.

Contra a naturalização e a normatização das identidades, me recordo das distintas fases da minha transição e como o avançar do tempo acalma, isto é, insiste em enquadrar, domesticando a subversão, a revolta e os questionamentos. Só hoje o presente pode dominar o passado, e encontrar nele novos sentidos, que minha consciência não lançaria luz. Se no começo me sentia obrigada a comprovar minha identidade trans, me enfrentando com o determinismo biológico e genético, pouco a pouco, isso se transformava em uma voz social dizendo que quantos menos soubessem que não sou cis, mais segura eu estaria.

Uma lembrança do começo da minha experiência comigo mesma: um saco de lixo preto escondido embaixo da cama, de um quarto que era um esconderijo, quase sempre trancado, só não mais que minhas palavras e sentimentos. Era um silêncio interno que se escondia por trás do teatro que me impunham. No saco haviam dezenas de roupas ganhadas de amigas que se desfaziam de suas peças para me dar muito mais do que tecidos e panos, mas uma nova chance de construir me, desta vez, pelas minhas próprias mãos, até onde alcançasse a limitada liberdade do capitalismo. Minha mãe, como a maioria das mães LGBT, sabia e negava-se a ver. Minha irmã saberia em algum momento e provocaria minha saída de casa, era uma questão de tempo até que eu fosse descoberta. Ainda com o nome que foi destinado ao nascer, criava um sistema de sobrevivência, da "dupla vida" da qual somos obrigadas a escolher. Nesses tempos, desde que assisti "Meu amigo Cláudia", e Wonder-Maravilhosa, minha grande referência, quase saiu da tela do computador e me deu um belo tapa na cara e dizia "Mona, você não nasce e morre como Gabriela,construa-se, seja sujeito dos seus sonhos", saia de casa com roupas masculinas, e uma mochila pesada. Andava até a padaria duas quadras de casa, e ali, num banheiro masculino apertado e fedido trocava minhas roupas, com barba ou sem barba, saia destruidora, com shorts ou vestidos e um bojo que permitisse me caracterizar no feminino. Um batom vermelho ou laranja que agredisse o xuxu (porque travesti não tem barba!) me enfrentando com os padrões de gênero. A repetição dos dias, construía na padaria, uma piada repetida. Era um garçom que já me aguardava sair do banheiro para dizer o quanto eu mudava, o medo de ser pega no banheiro ou de encontrar com algum vizinho que constrangesse minha família por quem eu estava decidindo ser.

Não me esqueço os olhares no ônibus, num dia que me arrumei na casa de Tristan - que era meu lar, aquele que criamos pra nós, como resistência e gratidão - e fui para a universidade assim. Meu coração saia pela boca e só não explodia por algum motivo sobrenatural. Me comiam com os olhos, numa mistura que hoje sei o tão comum que o é, de nojo e tesão, desejo e repressão, curiosidade e preconceito. Lembro de estar parada na frente da sala de aula, depois de ser sugada por olhares de todos os tipos de casa à universidade, e respirar fundo para adentrar a sala de aula, já esperando novos olhares, desta vez de colegas e professores que convivia. Ajeitei o vestido curto e abri a porta. A sala congelou assim como eu, e a professora despreparada reagiu com humor, riu e disse "hoje você está linda", desfilei - ou pelo menos, me senti como - e sentei. Não assisti um minuto sequer o conteúdo da aula, minha cabeça só se repetia " como vou embora agora?".

...

No dia que sai de casa, muito antes da mudança efetiva, minha irmã chegou em casa enquanto eu andava pela casa testando um novo vestido rosa e florido que ganhará de uma amiga. Ela correu para contar pra minha mãe, que encontrara o saco preto na mesma semana e pouco a pouco desmoronava a falsa paz construída sobre minha omissão. Não havia espaço pra quem eu me tornava. Sai de casa, aos choros, de vestido, passando pela portaria do prédio e caminhando pelas ruas tão próximas e tão inquisitoriais. As aparências daquela família ruíram e a culpa de não ser o que esperavam de mim e de existir incomodando, como não haveria outra forma de existir, me corriam. Não falei com minha mãe e irmã por quase um ano, então.

Já na minha casa, eu já conquistava mais espaços para poder existir, já havia afirmado meu nome, após muitas discussões se os nomes correspondentes aos gêneros são escolhas ou imposições, se eram uma consolidação ou uma nova fase. Mudava-me a cada minuto, meu cabelo crescia devagar devagarinho, e meus dois guarda roupas, um para o trabalho, outro para a vida, me despertava um suspiro da dor da vida capitalista e sua exploração opressora e a possibilidade de vida, da brisa, da esperança. Decidi-me e declarei aos meus amigos:

"Contra qualquer visão biológica - determinista - ou mesmo destinada, sem escolha, sou Virginia. Que não foi por escolha, é um tanto quanto óbvio, mas não utilizo isso como um escudo. Porque escolheria. E porque o novo teve de ser construído. Os passos que foram dados, ainda são os primeiros. Mas me imponho para mantê-los. Não que o próximo passo pareça mais fácil pelos que já foram dados, mas torna-se mais prazeroso saber que meus passos estão levando-me para onde eu me quero estar. Enquanto caminho, me modifico e redireciono, avanço, evoluo.

A cada passo meu, algumas contradições. A cada passo meu, mais camaradas ao meu lado avançam.
Sou uma pressão diária a todas/todos eles/elas. Sou uma intervenção e expressão apenas pela ousadia.

Meu corpo como instrumento de combate, também me serve como instrumento de expressão e identificação. Não sou por essência, não nasci homem, não nasci mulher. Não nasci quem eu sou. O que nasceu já se transformou, assim como ainda me transformarei.

A produção dos corpos, de um nome, de uma posição em relação ao mundo se dá pela existência nele. Existência essa que se recusa e se entrega. De muita crise e muita miséria. Me impõem o combate e respondo com o marxismo com predominância estratégica! Me impõem a dor, então busco meus camaradas. Me impõem a insegurança, sei que não estou sozinha.

Isso não é um renascimento, pois nunca estive morta. Isto aqui chama-se Stone Wall! Chama-se a construção de uma identidade. Chama-se tomar as vidas pelas próprias mãos. Chama-se uma resposta as pressões machistas e homofóbicas! Eu me chamo Virginia.

Não nasci Virginia, isto é um fato. Mas não poderia morrer, sem sê-la.




...


Cada momento dessa construção, acumulava uma força que nunca tive, não é natural do ser humano, mas se constrói. Com lágrimas contidas, amores desconstruídos pela transfobia e aquele gosto bom de viver, pela primeira vez, com minha verdadeira forma de ser. Mas também me fiz Virgínia, seguindo a vida dupla no trabalho, onde sabia que quanto mais me expusesse mais poderia ser demitida e me somar ao alto índice de pessoas trans que não alcança trabalho formal e só nos resta a prostituição como forma de subsistência. Ser trans se constrói na realidade de se somar a estas contradições, isso a vida me ensinou. Não era uma construção em abstrato, pertenço a classe trabalhadora e sou sujeito político que não me contento em me construir, sem desconstruir essa sociedade e erguer uma nova. Assim sentia que minhas decisões tinham um peso muito grande. Ser integralmente eu mesma impunha "arcar com os preços", isto é, dar um passo a frente e sozinha, ainda que logo atrás houvessem muitos camaradas apoiando e incentivando meus passos. Mas eram minhas pernas que tremiam e por oras me deixavam em dúvida se iriam pra frente ou pra trás. Mas não me paralisei, conversei com meus colegas de trabalho, depois consegui no RH o meu direito ao nome social no crachá e em seguida procurei minha chefe para contar sobre como queria ser tratada. Pela lei, a saúde pública tinha que me engolir, ainda assim qualquer deslize poderia ser demitida por qualquer desculpa. Os primeiros dias eram agonizantes, porque os olhares e o estranhamento entre os colegas de trabalho, os comentários por trás e as dificuldades de usarem meu nome social eram naturalizadas e questionar isso era "não ter paciência" com o processo. Poderia até ser, mas era já mais de um ano querendo minha libertação e sempre eu precisava aceitar que "as coisas tem seu tempo". E a vida plena, seria quando?

Nesse momento da minha construção da identidade de gênero, a binaridade era algo ainda distante, pois estava numa contradição permanente das imposições sociais e dos limites da minha construção enquanto indivíduo. Sem o peso da harmonização e as novas imposições que me apareceriam, ser binária não era uma escolha, pois era vista e constantemente constrangida pelos meus traços físicos. A dupla vida causava contradições, ao mesmo tempo que me montar exigia coragem cotidiana pra atravessar dois mundos completamente distintos, o existir e ser "lido" enquanto homem e ser uma travesti. Se pensei em desistir? Era um caminho sem volta, ou melhor, entre o passado e a falsa acomodação, eu escolhi a vida.

...

Ser reconhecida como trans me permitiu ir consolidando com condições determinadas minha identidade e também minha bandeira de luta. Este orgulho de ser parte de um grupo social de pessoas que não aceitaram a identidade imposta e decidimos sobre os nossos corpos, apesar da igreja, da família e do Estado. Tomamos as rédias das nossas vidas, nossos nomes e nossa identidade. Não podem me tirar.

Nós dias de hoje, sempre próximo do 1 de Maio, o dia internacional da luta dos trabalhadores, me recordo ainda de no breu da noite, já deitada com minha amiga e ela me perguntando se eu gostaria de ir montada no 1 de Maio, em 2012. Deitada ao lado desta companheira, com quem hoje ainda divido a vida e o apaixonado sonho da libertação da humanidade, disse um tímido sim, ela então perguntou novamente "mas não quer ir vivendo assim?" e sorri, já tinha decido por mim, ser eu mesma e, mesmo que não seja fácil, não abro mão, pois como dizia Mrs Woolf, "Sou Dona da minha alma".

À Amanda Araújo

Nos matam todos os dias
Gritam, esfaqueiam, xigam transfobia
Os nossos nomes verdadeiros
Não contam, não aceitam
Não precisa esconder o ódio
Já não escondemos o nosso
Dia após dia
Menos uma de nós está viva
Mas já estamos de cabeça erguida
Sem choro, não existe justiça
Nos organizamos às escondidas
Em breve
Venceremos essa cina
Nenhuma trans a menos
Nenhuma trans vencida

quarta-feira, 13 de abril de 2016

Morte travesti

Permaneço
Viva
Por pura covardia
Me falta coragem
Pra deixar essa carcaça
No lixo das flores
Onde em paz
A recompensa
Se apresenta

Não encontrei
Na vida limitada que me ofereceram
Eu mesma

Permanente
Em crise
Por pura mesmice
Faltaram criatividade
Pro romance sem paixão
Que foi oq que pude escrever
Com minhas próprias mãos

Egoísmo
Por todos os lados
E dentro de mim
Um beijo
Pra meus pensamentos
Um trago
Pra falar essas vozes
Que se repetem
No meu passado e presente

domingo, 3 de abril de 2016

Espelho

Quando nao sou máquina
Me sinto enferrujada
Descartável e tão tão inútil
Sou forte
Mas quando não sou máquina
Nao quero ser
Queria não precisar ser
Ou máquina
Ou fraca
Ou forte
Ou sorridente
Tristeza decadente, não?
Nao sentir se bem
Por mais de alguns minutos
Tão passageiros
Mais ligeiros que as paixões
Que um dia provaram
Que tenho coração
Mas talvez
Nao sirva como deveria ser
Seila
Desabafo
Mas não alivia mais