terça-feira, 26 de abril de 2016

Entre homem e mulher: Sou dona da minha Alma



Esses dias uma pessoa não binária - que não aceita a binaridade homem/mulher -, me perguntou "me desculpe a pergunta, mas você é nb (não binária)?" respondi "até tento, mas a cisnormatividade não ajuda". Ela riu. A noite, conversando com minha amiga Bea, e pensando a minha construção em particular, e as identidades trans, em geral, conversamos sobre as imensas dificuldades que temos para construir no capitalismo uma identidade de gênero verdadeiramente livre e emancipadora, capaz de expressar na sua potencialidade as distintas expressões e liberdades que nossos corpos e mentes, em constante mutação e renovação, querem ser.

Por isso, mais uma vez, me vi escrevendo e expondo-me do ridículo ao contraditório, para aproximar os olhos e o coração daqueles que desconhecem a vivência trans, como foi libertador pra mim contar minhas expectativas e a experiência da minha construção de gênero, dar uma perspectiva do mundo desde o corpo, o toque e a voz de uma travesti.

Contra a naturalização e a normatização das identidades, me recordo das distintas fases da minha transição e como o avançar do tempo acalma, isto é, insiste em enquadrar, domesticando a subversão, a revolta e os questionamentos. Só hoje o presente pode dominar o passado, e encontrar nele novos sentidos, que minha consciência não lançaria luz. Se no começo me sentia obrigada a comprovar minha identidade trans, me enfrentando com o determinismo biológico e genético, pouco a pouco, isso se transformava em uma voz social dizendo que quantos menos soubessem que não sou cis, mais segura eu estaria.

Uma lembrança do começo da minha experiência comigo mesma: um saco de lixo preto escondido embaixo da cama, de um quarto que era um esconderijo, quase sempre trancado, só não mais que minhas palavras e sentimentos. Era um silêncio interno que se escondia por trás do teatro que me impunham. No saco haviam dezenas de roupas ganhadas de amigas que se desfaziam de suas peças para me dar muito mais do que tecidos e panos, mas uma nova chance de construir me, desta vez, pelas minhas próprias mãos, até onde alcançasse a limitada liberdade do capitalismo. Minha mãe, como a maioria das mães LGBT, sabia e negava-se a ver. Minha irmã saberia em algum momento e provocaria minha saída de casa, era uma questão de tempo até que eu fosse descoberta. Ainda com o nome que foi destinado ao nascer, criava um sistema de sobrevivência, da "dupla vida" da qual somos obrigadas a escolher. Nesses tempos, desde que assisti "Meu amigo Cláudia", e Wonder-Maravilhosa, minha grande referência, quase saiu da tela do computador e me deu um belo tapa na cara e dizia "Mona, você não nasce e morre como Gabriela,construa-se, seja sujeito dos seus sonhos", saia de casa com roupas masculinas, e uma mochila pesada. Andava até a padaria duas quadras de casa, e ali, num banheiro masculino apertado e fedido trocava minhas roupas, com barba ou sem barba, saia destruidora, com shorts ou vestidos e um bojo que permitisse me caracterizar no feminino. Um batom vermelho ou laranja que agredisse o xuxu (porque travesti não tem barba!) me enfrentando com os padrões de gênero. A repetição dos dias, construía na padaria, uma piada repetida. Era um garçom que já me aguardava sair do banheiro para dizer o quanto eu mudava, o medo de ser pega no banheiro ou de encontrar com algum vizinho que constrangesse minha família por quem eu estava decidindo ser.

Não me esqueço os olhares no ônibus, num dia que me arrumei na casa de Tristan - que era meu lar, aquele que criamos pra nós, como resistência e gratidão - e fui para a universidade assim. Meu coração saia pela boca e só não explodia por algum motivo sobrenatural. Me comiam com os olhos, numa mistura que hoje sei o tão comum que o é, de nojo e tesão, desejo e repressão, curiosidade e preconceito. Lembro de estar parada na frente da sala de aula, depois de ser sugada por olhares de todos os tipos de casa à universidade, e respirar fundo para adentrar a sala de aula, já esperando novos olhares, desta vez de colegas e professores que convivia. Ajeitei o vestido curto e abri a porta. A sala congelou assim como eu, e a professora despreparada reagiu com humor, riu e disse "hoje você está linda", desfilei - ou pelo menos, me senti como - e sentei. Não assisti um minuto sequer o conteúdo da aula, minha cabeça só se repetia " como vou embora agora?".

...

No dia que sai de casa, muito antes da mudança efetiva, minha irmã chegou em casa enquanto eu andava pela casa testando um novo vestido rosa e florido que ganhará de uma amiga. Ela correu para contar pra minha mãe, que encontrara o saco preto na mesma semana e pouco a pouco desmoronava a falsa paz construída sobre minha omissão. Não havia espaço pra quem eu me tornava. Sai de casa, aos choros, de vestido, passando pela portaria do prédio e caminhando pelas ruas tão próximas e tão inquisitoriais. As aparências daquela família ruíram e a culpa de não ser o que esperavam de mim e de existir incomodando, como não haveria outra forma de existir, me corriam. Não falei com minha mãe e irmã por quase um ano, então.

Já na minha casa, eu já conquistava mais espaços para poder existir, já havia afirmado meu nome, após muitas discussões se os nomes correspondentes aos gêneros são escolhas ou imposições, se eram uma consolidação ou uma nova fase. Mudava-me a cada minuto, meu cabelo crescia devagar devagarinho, e meus dois guarda roupas, um para o trabalho, outro para a vida, me despertava um suspiro da dor da vida capitalista e sua exploração opressora e a possibilidade de vida, da brisa, da esperança. Decidi-me e declarei aos meus amigos:

"Contra qualquer visão biológica - determinista - ou mesmo destinada, sem escolha, sou Virginia. Que não foi por escolha, é um tanto quanto óbvio, mas não utilizo isso como um escudo. Porque escolheria. E porque o novo teve de ser construído. Os passos que foram dados, ainda são os primeiros. Mas me imponho para mantê-los. Não que o próximo passo pareça mais fácil pelos que já foram dados, mas torna-se mais prazeroso saber que meus passos estão levando-me para onde eu me quero estar. Enquanto caminho, me modifico e redireciono, avanço, evoluo.

A cada passo meu, algumas contradições. A cada passo meu, mais camaradas ao meu lado avançam.
Sou uma pressão diária a todas/todos eles/elas. Sou uma intervenção e expressão apenas pela ousadia.

Meu corpo como instrumento de combate, também me serve como instrumento de expressão e identificação. Não sou por essência, não nasci homem, não nasci mulher. Não nasci quem eu sou. O que nasceu já se transformou, assim como ainda me transformarei.

A produção dos corpos, de um nome, de uma posição em relação ao mundo se dá pela existência nele. Existência essa que se recusa e se entrega. De muita crise e muita miséria. Me impõem o combate e respondo com o marxismo com predominância estratégica! Me impõem a dor, então busco meus camaradas. Me impõem a insegurança, sei que não estou sozinha.

Isso não é um renascimento, pois nunca estive morta. Isto aqui chama-se Stone Wall! Chama-se a construção de uma identidade. Chama-se tomar as vidas pelas próprias mãos. Chama-se uma resposta as pressões machistas e homofóbicas! Eu me chamo Virginia.

Não nasci Virginia, isto é um fato. Mas não poderia morrer, sem sê-la.




...


Cada momento dessa construção, acumulava uma força que nunca tive, não é natural do ser humano, mas se constrói. Com lágrimas contidas, amores desconstruídos pela transfobia e aquele gosto bom de viver, pela primeira vez, com minha verdadeira forma de ser. Mas também me fiz Virgínia, seguindo a vida dupla no trabalho, onde sabia que quanto mais me expusesse mais poderia ser demitida e me somar ao alto índice de pessoas trans que não alcança trabalho formal e só nos resta a prostituição como forma de subsistência. Ser trans se constrói na realidade de se somar a estas contradições, isso a vida me ensinou. Não era uma construção em abstrato, pertenço a classe trabalhadora e sou sujeito político que não me contento em me construir, sem desconstruir essa sociedade e erguer uma nova. Assim sentia que minhas decisões tinham um peso muito grande. Ser integralmente eu mesma impunha "arcar com os preços", isto é, dar um passo a frente e sozinha, ainda que logo atrás houvessem muitos camaradas apoiando e incentivando meus passos. Mas eram minhas pernas que tremiam e por oras me deixavam em dúvida se iriam pra frente ou pra trás. Mas não me paralisei, conversei com meus colegas de trabalho, depois consegui no RH o meu direito ao nome social no crachá e em seguida procurei minha chefe para contar sobre como queria ser tratada. Pela lei, a saúde pública tinha que me engolir, ainda assim qualquer deslize poderia ser demitida por qualquer desculpa. Os primeiros dias eram agonizantes, porque os olhares e o estranhamento entre os colegas de trabalho, os comentários por trás e as dificuldades de usarem meu nome social eram naturalizadas e questionar isso era "não ter paciência" com o processo. Poderia até ser, mas era já mais de um ano querendo minha libertação e sempre eu precisava aceitar que "as coisas tem seu tempo". E a vida plena, seria quando?

Nesse momento da minha construção da identidade de gênero, a binaridade era algo ainda distante, pois estava numa contradição permanente das imposições sociais e dos limites da minha construção enquanto indivíduo. Sem o peso da harmonização e as novas imposições que me apareceriam, ser binária não era uma escolha, pois era vista e constantemente constrangida pelos meus traços físicos. A dupla vida causava contradições, ao mesmo tempo que me montar exigia coragem cotidiana pra atravessar dois mundos completamente distintos, o existir e ser "lido" enquanto homem e ser uma travesti. Se pensei em desistir? Era um caminho sem volta, ou melhor, entre o passado e a falsa acomodação, eu escolhi a vida.

...

Ser reconhecida como trans me permitiu ir consolidando com condições determinadas minha identidade e também minha bandeira de luta. Este orgulho de ser parte de um grupo social de pessoas que não aceitaram a identidade imposta e decidimos sobre os nossos corpos, apesar da igreja, da família e do Estado. Tomamos as rédias das nossas vidas, nossos nomes e nossa identidade. Não podem me tirar.

Nós dias de hoje, sempre próximo do 1 de Maio, o dia internacional da luta dos trabalhadores, me recordo ainda de no breu da noite, já deitada com minha amiga e ela me perguntando se eu gostaria de ir montada no 1 de Maio, em 2012. Deitada ao lado desta companheira, com quem hoje ainda divido a vida e o apaixonado sonho da libertação da humanidade, disse um tímido sim, ela então perguntou novamente "mas não quer ir vivendo assim?" e sorri, já tinha decido por mim, ser eu mesma e, mesmo que não seja fácil, não abro mão, pois como dizia Mrs Woolf, "Sou Dona da minha alma".

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