terça-feira, 26 de abril de 2016
Um gosto contraditório de ser quem não se pode ser
Há quase um ano, estava com o coração explodindo quando entrava no consultório trans (CRT - Santa Cruz) para passar com a endocrinologista e conseguir meus primeiros hormônios. Escrevi uma pequena crônica para dizer quão feliz eu estava, mas quão contraditório era todo esse procedimento. De lá pra cá, vivi uma montanha russa de emoções, medos, inseguranças e dilemas sobre minha identidade de gênero. Algumas conquistas, e de contra partida mais humilhações e instabilidade.
Hoje me ligaram do ambulatório para dizer que eu que estava na fila desde 2013 para o atendimento psicológico (isto é, processo obrigatório para atestar em laudo meu Código Internacional de Doença e poder iniciar o tratamento hormonal), finalmente havia conseguido uma vaga. A sorte que há um ano já havia conseguido uma psicóloga da Unidade Básica de Saúde que não me atestou como doente mental, mas como "indivíduo livre para se desenvolver socialmente com o gênero que me identifico". Assim dei início a minha hormonização, mas todos esses anos a falta de um tratamento psicológico efetivo custava caro. As dificuldades de me expor e ser sincera com medo disso permitir algum possível veto a seguir este tratamento, influenciou muito e me fez voltar a escrever (e a respirar).
Nos primeiros dias, eram "pílulas mágicas", não poderiam mudar absolutamente nada, mas a sensação era que estava dando um passo a frente. Decisão difícil, se submeter a hormônios que nas bulas nada mencionavam a minha existência, pelo contrário, reafirmavam os corpos da mulheres cis. Nos primeiros meses, meu peito se tornou muito sensível, descer as escadas eram a dolorosa felicidade de "algo ali se mexer". Mas já na próxima consulta, quatro meses depois, a "segurança" que buscava em fazer acompanhamento da minha harmonização caiu por terra. Uma semana antes da consulta meus comprimidos acabaram, e o que começava a se desenvolver, retrocedeu. Quando cheguei na endocrinologista, os exames estavam ótimos, mas os hormônios estavam em falta. Então, foi receitado outro, que eu deveria comprar por conta própria. Comecei então a comprar na farmácia e junto a isso, ver que além da ausência de estudos profundos sobre nossa saúde e a precária situação que temos de sobrevivência, no próprio ambulatório voltado as pessoas trans, nada é tão diferente assim. Não havia uma "continuidade obrigatória" da medicação, mas em um ano, houve três pílulas de hormônios femininos diferentes.
Com o passar dos meses, meu corpo começava a ter mais hormônios femininos do que masculinos, graças ao bloqueador de testosterona que tomava junto aos hormônios femininos. Meu corpo entrava numa ebulição, TRANS-formando-se. Até que no dia 07 de Junho de 2015 explodi. Meu corpo cada dia mais exigia mais mudanças, menos paciência comigo mesma e uma solidão que atingia a alma elevada a vigésima potência. Vim do trabalho pra casa chorando, estava só. Acendi um, dois, três cigarros e o choro engolia minha falta de palavras. No fundo, sabia que não adianta gritar, nem explicar o que sentia. Meu corpo e minha mente estavam sendo esmagados pelos padrões que nunca iria me encaixar, uma pressão cisnormativa de como era vista e o quanto ainda faltava "pra ser mulher de verdade". Não adiantava. O choro não iria embora, a não ser que eu fosse primeiro. Não me esqueço da canção de rap que se repetia, sem pausa, misturada com meus soluções e dificuldade de respirar. Até quando poderia aguentar está situação? Era estar nua o tempo todo, e as risadas sobre o meu corpo ensurdecendo meus ouvidos. Eram já centenas de mulheres trans que tinham sido vencidas por essa sociedade transfobica e capitalista que destrói nossos corações e nossas potencialidades de realmente sermos. Era a luta com meu corpo como campo de batalha que o risco de não aguentar, de sucumbir à dor e a falta de esperança, me marcava e ficará pra sempre.
Me doia ser tão consciente do mundo que vivo e saber que ser revolucionária não diminuía em nada a dor que sentia. Sim, as respostas que dei e sigo dando apontam pra minha emancipação, pra luta revolucionária, para combater na política e na vida, a miséria das relações e também da ideologia que nos quer amedrontar e fazer desistir. Mas não parou de doer, um segundo que fosse.
Desci as escadas, o rosto inchado, os hormônios eram uma parte do que me fragilizava, o mundo tal como é, era todo o resto. Os comprimidos criaram em mim uma sensibilidade tão própria deste momento de me construir como sou, que não me servia mais as armaduras, nem a própria anulação de mim mesma, precisava encarar de frente e não me sentia pronta pra isso. Lembro de tomar o resto de uma cachaça que estava há tempos no congelador e não lembro mais quando ao certo apaguei daquele pesadelo.
No dia seguinte, eu estava muda. Já não me sentia parte de nada e justamente pela minha subjetividade não era capaz ou não valia a pena tentar reproduzir tudo o que estava na minha cabeça. Era uma bagunça que mesmo hoje ainda não saberia explicar. Era explosão, tudo em cacos. Aquele momento onde parece que todo o peso de ser quem se é numa sociedade que nada se pode ser, me deixava presa ao chão, sem poder me levantar. Nada me interessava, até porque nada mudaria a situação de se sentir um monstro aos olhos alheios, uma mutação de algo que não está de um lado (homem) e nem do outro (mulher).
Os dias passavam, e o vazio não me deixava. Encontrei um moço que me deu algumas borboletas no estômago e sorria enquanto me olhavam nos olhos. Meu corpo, pela primeira vez, em contra dos hormônios que cada vez mais castravam minha sexualidade e meu libido, queria se entregar a ele. E me entreguei. De cabeça, e de corpo também. Comecei então a me formar em poesia, e a cada batida que meu coração dava, escrevia uma nova. Pela primeira vez, me sentia bem com outra pessoa e queria realmente te-la por perto. Ele, ainda menino, não entendia nada do que eu estava passando e depois descobriria que não se importava, mas em cada beijo ou toque que passava pelo meu corpo, provocava um alívio e uma felicidade de superar o mito de que nunca poderia encontrar alguém. Escrevia poesias, em papel e no corpo dele, com lápis e com minha língua. Era um momento que me libertava e me sentia corajosa de estar vivendo algo assim. Os poucos abraços e mesmo o silêncio que sempre existiu entre nós, me preenchiam, acostumada com a miséria do capitalismo, achava que já era muito. Era intenso. E mesmo ouvindo de que era melhor não gostar tanto assim, não podia ser de outra forma. Ele era doce e ao mesmo tempo com quem eu mais queria dividir meus pensamentos. Mas era pesado demais e por vezes me convenci de não falar. Então, era mais poesia.
Nos primeiros dias que saímos, sentia o peso da cisnormatividade. Em cada ação e em cada momento me preocupava como ele me via, ainda que eu não conseguia perguntar, por medo das respostas. O sexo apesar de muito bom, começava também a expressar estas pressões. A minha relação comigo mesma, havia mudado muito com a castração química, e pouco conseguia me masturbar ou me sentir bem com essas mudanças. Com os meses, perdia não apenas o libido mas a intensidade até no fim o próprio gozo. Estar com ele também era difícil, porque no sexo, uma parte de mim ele ignorava. Tentei evitar. Porque abrir qualquer discussão significava colocar todo este debate, eu sei... Me colocar por inteira, e isto colocava tudo em risco. Já que num país tão hipócrita, as pessoas conseguem fingir descaradamente que "se confundiu" ou "não sabia" que somos trans, talvez para estar com ele, precisaria ser sempre metade. Mas isso só comprovava que não existia espaço para ter uma relação, pois mesmo estando juntos, mesmo enquanto ele ainda não via mais ninguém, eu sempre seria a "outra", enquanto ele espera por alguém. Ele dizia que gostaria de namorar, mas eu não era uma opção. Nunca me fez um elogio e mesmo dizendo que tinha um jeito especial de gostar de mim, e acredito que houvesse mesmo, não era o bastante para equilibrar o peso de estar ao meu lado.
Os riscos me davam calafrios, mas não poderia construir uma relação que também não fosse sincera, então melhor seria jogar tudo pro ar, do que chegar até aqui e desistir de quem eu sou. Ele não entendia e eu mal poderia me explicar. Ele disse "não acho que seja uma questão de atraso, mas de não querer mesmo" e partiu meu coração como tantas outras vezes que faria depois.
Numa dessas tardes, de altos e baixos, meu corpo novamente era o centro dos meus medos. Ele me deixaria pelo meu corpo? Ele esperaria os resultados? Mais que isso, eu consigo esperar mais por resultados? Corri, desci ate a farmácia e comprei uma Perlutan, hormônio injetável - o mais utilizado e contra indicado pelas travestis. Minha médica do CRT já havia dito, incansáveis vezes, que era contra o uso desse hormônio. Mas os que me davam, no que adiantavam? É o desespero que me tomava conta, comprei o hormônio, mas não queriam me aplicar sem receita. Grande dilema! Procurei duas outras farmácias e todas se recusavam. Entrei numa última, pedi então a seringa e senão fosse por eles, eu mesma aplicaria. E lá, me aplicaram (e aplicam até hoje). Decidi então, tomar por conta meus hormônios e invés de seguir no SUS sem medicamentos e sem coragem de contar as médicas que havia decidido pelo meu corpo e qual hormônio iria tomar. O problema é que além dessa médica não conseguia passar em qualquer outro médico, porque não entendem meu corpo e constantemente não conseguem respeitar minha identidade de gênero. Chorava sozinha, tantas vezes, só querendo entender o que dizia meu corpo, o que estava mudando, no que me transformava.
Nos encontramos, eu e o boy, mais algumas vezes e de agosto até janeiro essas idas e vindas instigaram meu corpo e contribuíam para mais crises de quem eu era e de como lutar para ter minha identidade de gênero orgulhosa, pois a cada dia, a vergonha e os ataques vinham mais fortes. Chegava a desejar ser outra só para ele poder me querer por inteira. Só pra ter a chance dele também gostar de mim. Com muita coragem, ainda nua, deitada no seu peito, perguntei a ele, se via que meu corpo mudava, meu seios cresciam... Tremia, enquanto olhava pra ele, esperava uma resposta. Mas não houve mais que um sim timido, percebia então que ele não poderia ser uma muleta, era um indivíduo que também queria ser livre. Não o culpo, e aprendi a deixá-lo ir. Ainda que levasse consigo a segurança sob meu corpo e meus desejos já não reprimidos.
Depois já com o Perlutan e uma bomba quinzenal de hormônios no meu organismo decidi parar de fumar. Os altos índices de trombose, de outros problemas de saúde, me faziam refletir como revolucionária que precisava sobreviver mais do que os 35 anos previstos para as travestis. Mas abrir mão do cigarro, era abrir mão do minha única companhia permanente e anesteciante. Parei dois meses, do fim de novembro a fevereiro quando outra crise viria.
No fim do ano, acordei cedo e fiquei numa fila para um objetivo incerto. Precisava dar os primeiros passos para mudar definitivamente meu nome. Já não me cabiam mais conviver com "César Augusto" em meus documentos. Não existia mais aquela pessoa e não me trazia boas sensações ter de me explicar todas as vezes que apresentava o documento. Não era sobre vergonha do passado, tampouco querer disfarçar que sou trans, mas uma luta para o Estado reconhecer minha identidade. Demorou muito, mas consegui uma advogada. Conversamos, e ela muito educada se mostrou interessada em defender meu caso. Entramos com o processo e sem data de previsão, torcia para mudar meu nome antes de morrer, pelo menos ter meu nome respeitada na lápide. Então, um mês depois, surpreendentemente, vejo a notícia, meus olhos desciam acompanhando o veredito no ritmo que se encheram de lágrimas enquanto eu lia. Finalmente, estava o Estado reconhecendo minha identidade? Estava dando outro grande passo na minha e dessa vez era definitivo, não poderiam arrancar de mim. Não poderiam mais me chamar por um nome que não me pertence.
Na mesma semana, me organizei pra ler os documentos pensando que inclusive pela agilidade do processo e por ter um laudo não patologizante poderia contribuir com tantas outras trans que precisam deste direito e não conseguem acessa-lo. Mais decepção impossível. A sentença era mentirosa, se baseava em documentos que não tinha apresentado (como passar em psiquiatra que nunca passei) e formulações bizarras como "o transsexualismo se da a partir de uma anomalia no sistema nervoso central". Oi? Que Estado hipócrita! E para piorar, aceitaram mudar meu nome, mas insistem em manter o gênero masculino. Não reconhecem, nem por um segundo, nosso direito a identidade de gênero. Que somos o que queremos ser.
Um gosto amargo, das humilhações e da contrapartida das vitórias parciais. Não me arrependo nem de quem sou, nem das paixões, nem dos enfrentamentos diários. E me sinto muito mais forte hoje. Sou uma revolucionária e minha vida é guiada por problemas sociais, pela histórica tristeza da humanidade que é ter sua essência roubada por este sistema capitalista. Todavia, não sinto menos o peso de ser travesti, não dói menos. A força está em saber transformar, quando possível, esta dor em ódio. E para cada obstáculo que nos impõem, resgatar Stonewall. Se Marsha enfrentou a polícia e disse " nenhum orgulho para alguns, sem liberdade para todos", eu sou apenas uma aprendiz. Mas vou crescer.
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