Quatro dias sem fumar, em vez de fumar um cigarro atrás do outro, como seria de costume quando fico nervosa. Quase enlouquecendo. A cada dia que passava, riscava em minha agenda e cronometrava as horas que ainda faltavam. Tentava me convencer a não ser tão esperançosa, pois outras consultas médicas já haviam me desapontado com a longa espera para receber legitimamente meu tratamento hormonal.
Em dezembro de 2013, passei na primeira consulta médica no Ambulatório de Travestis e Transexuais, na Santa Cruz. Um dos dois únicos lugares de São Paulo que possuem tratamento hormonal especializado e onde pode-se encaminhar também para a realização da "famosa" (e tão curiosa) cirurgia para homens e mulheres trans sentirem-se mais confortáveis, mais felizes, ou em alguns casos não deprimidas com seus corpos.
Todos os dias que esperei por este tratamento, vi de frente os avanços e contradições do sistema público de saúde para com as pessoas trans. Afinal, trabalho na saúde e tive de fazer diversos acompanhamentos com clínico geral, psicóloga e endocrinologista. Construção, como é minha identidade - e não é todos assim? De acordo com a vida, do que nos foi ensinado, do que nos foi apresentado, do que nos foi permitido e de como nos relacionamos com o mundo afora de nós mesmas? -, fui conhecendo cada vez mais sobre mim mesma e sobre o que é ser uma travesti na sociedade capitalista, no Brasil, em São Paulo, e inclusive trabalhando na saúde pública.
Mas, então, finalmente foi nessa segunda-feira. Fui trabalhar às 7 horas da manhã e o relógio parecia não acelerar o tempo para obter a resposta. No meu armário estava o Parecer Psicológico necessário para conseguir uma autorização e as prescrições médicas para começar o tratamento hormonal.
Fiquei pensando se agora seria a minha vez de poder efetivamente construir meu corpo de acordo com quem eu sou e quero ser. Há um ano consegui meu nome social no Crachá do trabalho e hoje todos os funcionários reconhecem minha identidade, ainda que na justiça ainda não tenha dado nem os primeiros passos para a mudança de nome. Sem dúvidas, esse direito básico de ter um trabalho registrado e poder ser eu mesma nele é um ponto fora da curva da situação da maioria das travestis.
Ao me encontrar com uma psicóloga uma vez por semana, como etapa necessária para conseguir a autorização médica e começar o tratamento hormonal, tive muita dificuldade de confiar na nela, mesmo ela me dizendo que não estava ali para me autorizar ou desautorizar, para "investigar" ou padronizar minha identidade. Numa sociedade tão opressora, conseguir uma psicóloga que enxergue estas consultas como um atendimento à minha saúde em vez de uma maneira de policiar meu corpo e minha identidade, ao invés de me desmoralizar ainda mais colaborando com as ofensas e desprezos diários ou, na "melhor das hipoteses", me encaminhando para o tratamento como medida para "curar", "tratar", "resolver" a minha disforia, como chamam, ou o "transtorno" como diz a Organização Mundial de Saúde (OMS). Foi difícil confiar na minha psicóloga, porque mesmo ela sendo tão rara na psicologia quanto eu no mundo do trabalho, ainda me sentia algemada a ela, por imposição.
Quando terminei de almoçar, vi que estava no horário. Avisei minhas colegas de trabalho que iria na consulta e, uma delas, Rosana, grande amiga minha, me deu um abraço e me desejou boa sorte. Fui. Corria e meu coração explodia, o ônibus era lento demais, o metrô muito quieto e a insegurança de qual seria a resposta hoje já me dava calafrios. Vão me negar por mais quanto tempo? Podem eles decidir por mim sobre meu corpo? A longa espera expulsou quantas travestis e transexuais da segurança na hormonização com acompanhamento médico? Os resultados de tomar por conta própria, do uso do silicone industrial poderão ser revertidos? São apenas 35 anos que esperam que sobrevivamos, no submundo.
Passei pela recepção, entreguei minha carteirinha. "Sala 17, só depositar a ficha". Sentei. Me levantei e bebi água. Sentei novamente. Nada... Mais espera. Tanto tempo esperando e aqueles minutos pareciam ser todos estes dois anos."Virgínia?" disse a médica endocrinologista ao meu lado. "Sim" respondi, enquanto me levantava e controlava meu coração para não sair pela boca.
Nos sentamos na sala médica. Ela buscou os exames correspondentes aos 11 tubos de sangue que tirei no mês passado especialmente para esta consulta. "Está tudo em ordem". Pediu para ler o Parecer Psicológico, o entreguei com orgulho. Neste Parecer, diferentemente dos que via na internet, não constava o CID (Código Internacional de Doenças, no qual somos representadas no CID 10, F-64 como Travesti-Bivalente, Transexualismo, entre outros). Pelo contrário, segundo as palavras de minha psicóloga: "Como condição humana estamos em constante transformação, e nessa metamorfose vamos nos fazendo a cada expressão e escolhas que realizamos (...) e nessa condição, Virginia vem realizando seu modo de ser no mundo, construindo a cada experiência seu existir que não se limite somente a sua sexualidade e muito menos a sexualidade cristalizada dos padrões de normalidade colocados socialmente".
Esse simples texto era quase uma história de contos de fadas, uma vez que meus amigos e amigas já receberam as piores palavras para descrever suas identidades. Nada de liberdade, nada de construção, nada de direitos, mas ofensas, menosprezo e patologização marcavam as tristes cartas que garantiam a continuidade do tratamento hormonal, enquanto invisibilizavam os indivíduos e oprimia suas identidades por trás daquela folha, que nunca poderia descrevê-los.
"Virgínia, você precisa assinar este termo de responsabilidade, declarando ciência sobre todas as transformações reversíveis e irreversíveis em seu corpo. Sabendo das possibilidade de resultados indesejados e que sua identidade de gênero não começa a partir do tratamento hormonal". Sorri. Li atenciosamente, afinal, a minha saúde era o motivo de estar fazendo este acompanhamento. Perguntei sobre o uso de álcool, cigarro junto as medicações, quais atenções eu deveria ter para saber se havia algo de errado com a resposta de meu organismo. Assinei, sorri de novo. Não me aguentava em mim. Finalmente, com 22 anos vou dar início a algo que quero desesperadamente desde os 18. E que poderia ter desejado ainda antes, se não fosse ideologicamente bombardeada por uma ideia que não controlava meu próprio destino, não construía minha própria identidade e não havia nada além do sistema binário de homens (cis) e mulheres (cis).
"Esperar não valeu a pena?" Minha mãe me perguntou, naquela noite. É claro que o tempo, para nós duas, nos mostrou a melhor solução desde que saí de casa e pudéssemos reconstruir uma relação entre nós. "Esperar para viver algo que já decidi, esperar pela saúde disponibilizar apenas dois locais especializados invés de todos os hospitais tratarem isso como uma questão de saúde, esperar enquanto milhares de nós não podem esperar, enquanto milhares de nós - e era esse um dos meus maiores medos - morre pelas mãos da transfobia estrutural sem ter conseguido ser de espírito e corpo o que queria. Não foi o tempo ou a espera que fez isto valer. Foram todos meus amigos e camaradas que estiveram ao meu lado, foram as conversas, o choro compartilhado, a agonia dividida, mas principalmente foi conhecer a história de lutadores como Zumbi dos Palmares, Rosa Luxemburgo, foi conhecer a história dos oprimidos que nunca desistiram, nunca se curvaram, nunca se envergonharam de serem os insurrectos que colocariam abaixo toda a forma de opressão. É minha fé convicta na revolução e nos trabalhadores que ergueu minha cabeça, moveu meu corpo e preencheu meu peito tantos dias e noites para não apenas me enxergar sozinha, mas ver que para além de trans, sou uma trabalhadora, sou uma revolucionária".
Naquela noite, mesmo com meu peito preenchido e a felicidade me contemplando, dormi com um gosto estranho, uma contradição já me assombrava. A conquista dos hormônios não garantiria de nenhuma forma minha emancipação, muito menos tornava mais livre minha construção da identidade de gênero. A transfobia aumentaria? Então, meu ódio também. A violência deste um ano e meio de espera, e os caminhos que pude desviar que agridem tantas travestis e todas as identidades que não seguem o padrão cisnormativo não se apaga com essa mudança. O Estado segue responsável pela violência que sofremos da mesma maneira que pela nossa falta de direitos básicos.
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